DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO / O CAPOTE - NICOLAI GOGÓL / PARTE 1 / É A HISTÓRIA DE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO QUE COM GRANDE SACRIFÍCIO CONSEGUE COMPRAR UM CAPOTE NOVO E É ROUBADO NO MESMO DIA...

O CAPOTE - PARTE 1

   Na Repartição de... Mas será melhor não a nomearmos, porque nada há mais susceptível do que os nossos empregados públicos, desde os amanuenses aos chefes de repartição. Atualmente, cada um sente-se em particular como se na sua pessoa toda a sociedade tivesse sido ofendida.

   Diz-se que um capitão da polícia apresentou, ainda não há muito tempo, uma queixa - não me recordo em que cidade isto se passou - revelando claramente que os decretos imperiais eram desdenhados por toda a gente e que o santo nome de um oficial era proferido com desprezo. E juntava, como prova, o volumoso tomo de certa novela em que, de dez em dez páginas, aparecia um capitão da polícia, e, o que é demais, em completo estado de embriaguez. Deste modo, para evitar desgostos, em vez de indicar a repartição onde ocorreu o facto, é preferível dizer apenas: "Numa repartição..."

   Por conseguinte, "numa repartição" servia "um funcionário". Esse funcionário, é justo dizê-lo, era muito distinto: de estatura baixa, um pouco picado das bexigas e igualmente um pouco curto de vista, com uma pequena calva a principiar na testa, rugas nas duas faces e, no rosto, essa cor característica do hemorroidal ... Que se lhe há-de fazer: A culpa era do clima de Sampetersburgo. Pelo que se refere à sua categoria (pois é entre nós a primeira coisa que se menciona), era o que se designa por "conselheiro titular perpétuo", um daqueles com que satirizam certos escritores que têm o benemérito hábito de cair a fundo sobre os inofensivos.

  O nosso funcionário tinha o apelido de Blaquemaquine (sapateiro), e já por esse apelido se vê qual tinha sido a sua ascendência; mas quando, onde e de que maneira tal apelido surgira ninguém o sabia; sabia-se apenas que pai, o avô e até mesmo o cunhado, e em geral todos os Blaquemaquines, tinham ascendentes sapateiros.

   Chamava-se Acaqui Acaquievich. Ora é possível que o leitor considere este nome um pouco estranho e pretensioso, mas pode crer que não é assim: ele foi-lhe posto nas circunstancias mais naturais e é fácil ver que não poderia ter sido outro.

   Acaqui Acaquievich nasceu na noite de 23 de Março. A sua defunta mãe, esposa de um funcionário, muito boa mulher, dispôs as coisas para que o menino fosse batizado segundo as praxes. A mãezinha estava ainda da cama em frente da porta; à direita, de pé, o padrinho, Ivan Ivanovitch Erochquine, excelente homem, chefe  de uma secretaria do Senado, e a madrinha, Arina Semenovna Bielobriuchkova, esposa de um oficial e mulher de extraordinárias virtudes. Apresentaram à parturiente três nomes para que escolhesse aquele de que mais gostasse: Moquia, Sosia, ou então o nome do mártir Josdasata. "Não!", pensou a doente. "Que nomes!" Para lhe serem agradáveis, levantaram a folhinha do calendário e leram, noutro lugar, mais três nomes: Trifili, Dula e Varaiasi. "Que castigo este!",comentou a mulher. " São tão bonitos como os outros! Nunca ouvi esses nomes! Ainda se fosse Varadat, ou Varui, mas agora Trifili e Varaiasi!"

   Voltaram mais uma folhinha do calendário e deparou-se-lhes: Pafsicai e Vaitisi. "Já vejo", disse, "é o destino que o quer! Nesse caso, prefiro que tenha o nome do pai. O pai chamava-se Acaqui, e o nome do filho será,portanto, Acaqui." Resultou dessa maneira Acaqui Acaquievich.
     O menino foi batizado, chorou e fez grandes caretas, como se pressentisse que teria de ser conselheiro titular. Foi isso que aconteceu.

     Contamos isto com o propósito de levar o leitor a compreender por si próprio como foi fatal a impossibilidade de lhe dar outro nome. Quando teria sido colocado na repartição e quem o teria nomeado são coisas de que ninguém se recorda. Todos os diretores e todos os chefes de repartição que por lá passaram viram-no sempre no mesmo lugar, na mesma posição e com a inalterável dignidade de um burocrata que compulsa requerimentos; ao vê-lo, poderia julgar-se que assim nascera neste mundo, completamente burocratizado, de uniforme e calvo.

    Ninguém na repartição o respeitava. O porteiro não só não se levantava à sua passagem como nem sequer se dignava lançar-lhe um olhar: importavase tanto com Acaqui como com uma mosca. Os chefes aproximavam-se dele com uma frieza autoritária. Qualquer ajudante do chefe de secretaria metialhe um oficio debaixo do nariz sem lhe dizer sequer: "Copie!", ou "Aqui tem você um belo trabalhinho, uma tarefa interessante", ou outra qualquer coisa amável, como é estrito dever dos funcionários inferiores bem-educados dizerem. O nosso homem pegava no ofício, olhava-o, sem mesmo reparar em quem lho entregara ou se aquele trabalho lhe competia, e punha-se imediatamente a escrever. 
    Os empregados mais jovens elegiam-no por tema de zombarias e chacotas e os amanuenses, que se presumiam de espirituosos, contavam, na sua presença e de diversos modos, a sua própria história e a da sua hospedeira, velhota dos seus 70 anos, que, segundo diziam, o espancava; e perguntavam quando era o casório, atirando-lhe à cabeça pequenos pedaços de papel, a fingir de flocos de neve. Acaqui Acaquievich não respondia uma só palavra às zombarias, como se ali estivesse sozinho. Essas chalaças nem sequer exerciam influência na tarefa que o absorvia: apesar de todas as impertinências de que era objeto, não fazia um único erro de escrita. Só quando a brincadeira se tornava insuportável e lhe batiam no cotovelo, desviando-lhe a atenção. exclamava:

    __Deixem-me! Por que zombam de mim?
    E havia alguma coisa de estranho nas suas palavras e na voz alterada com que as pronunciava. Alguma coisa soava nelas que despertava compaixão; e, por isso, um jovem colocado na repartição havia pouco tempo, que, seguindo o exemplo dos demais, se permitia zombar dele, deteve-se, impressionado, e modificou, a partir de certa altura, o seu comportamento, como se tudo, repentinamente, se tivesse transformado. 
     Que forca sobrenatural o elevava acima de todos os seus companheiros, a quem, até então, considerara pessoas corretas e civilizadas! E muito tempo depois, no meio das suas alegrias e prazeres, detinha-se, perplexo, a recordar o funcionário baixo, de calva a principiar na testa, e ouvia-lhe as penetrantes palavras: "Deixem-me! Porque me vexam?" E juntamente com essas palavras penetrantes ressoavam outras: "Sou vosso irmão!" E o jovem cobria o rosto com as mãos e estremecia intensamente, vendo quanta desumanidade existe no homem e quanta grosseria se disfarça sob a polidez, a educação e as maneiras da gente fina.
    "Deus meu! Até mesmo aquele cavalheiro a quem toda a gente considera digno e honrado..."

Dizer que servia com zelo não basta; deve dizer-se: servia com amor. Ali, naquelas cópias, revia-se como num mundo tranquilo e feliz. O prazer gritava-lhe na face. Havia letras que eram suas favoritas e, quando as escrevia, ficava como que excitado: sorria, devorava-as com os olhos e acompanhava a tarefa soletrando com os lábios, de maneira que era quase possível ler-lhe no rosto cada uma das letras que com a pena escrevia. 
    Se tivesse sido proposta, uma recompensa proporcional à sua diligência, talvez que, com espanto seu, já tivesse sido nomeado conselheiro de Estado. Mas tudo quanto ouviu foi uma cruel alusão dos seus companheiros irônicos: que em vez de uma condecoração na lapela tinha hemorroidas noutro sítio. E era assim a consideração que mostravam ter por ele. 
      Um diretor, homem de bom coração, desejando recompensá-lo pelos seus diligentes serviços, ordenou que lhe dessem alguns trabalhos de mais importância do que as simples cópias vulgares; encarregaram-no de informar outra repartição acerca dos documentos passados naquela a que pertencia, consistindo a sua tarefa em mudar os títulos e passar os textos da primeira pessoa gramatical para a terceira. Isto exigia-lhe tamanho esforço que, sem exagero, transpirava; esfregando a testa, exclamou por fim: "Não; é melhor que me deem um trabalho de cópia." E desde então ficou, para sempre, copista.
      Fora do mundo das cópias de ofícios, nada para ele existia. Nem sequer se preocupava com o vestuário; o seu uniforme perdera a cor amarela e tinha agora um tom desbotado e indefinido; a gola do casaco era estreita e baixa, de modo que o pescoço, apesar de ser um pouco gordo, parecia de uma extraordinária altura, lembrando aqueles gatitos de gesso que movem a cabeça.

     Trazia sempre qualquer coisa agarrada ao uniforme, fossem palhas ou palitos, pois tinha tanta sorte, ao ir pela rua, que passava debaixo de uma janela no preciso momento em que deitavam fora uma lata vazia, e trazia sempre no chapéu de chuva pevides e cascas de melão, ou coisas semelhantes. Nem uma só vez na vida prestara atenção ao que se passava ou sucedia diariamente na rua. 
     Nisso era muito diferente dos jovens funcionários, que, de olhar extremamente móvel e penetrante, imediatamente notavam quem levava os fundilhos das calças um pouco coçados, sorrindo com irônico prazer das alheias misérias. 
     Acaqui Acaquievich, embora divagando o olhar por tudo isso, via exclusivamente os seus ofícios corretos, copiados com uma letra esmerada, e só por casualidade, quando lhe roçava pelo ombro o focinho de um cavalo e o vento lhe soprava no rosto, só então, dava conta de que se não encontrava no meio de um parágrafo, mas no meio da rua.
    Ao chegar a casa, sentava-se à mesa, levava rapidamente à boca umas tantas colheradas de sopa, comia a carne de vaca com cebola, sem atender sequer ao paladar: era capaz de comê-la com moscas e tudo. Quando verificava que começava a ter o estômago cheio, levantava-se da mesa, ia buscar um pequeno tinteiro e copiava os papéis que trouxera da repartição para trabalhar em casa; se não trouxera trabalho, ocupava-se então a copiar por gosto e divertimento, e fazia-o com uma íntima satisfação, não derivada apenas do belo talhe de letra que possuía, mas da importância da pessoa a quem imaginava que o ofício se dirigia.

   Até quando se obscurece totalmente o céu nevoento de Sampetersburgo e toda a multidão de empregados ceia segundo as suas possibilidades, conforme os vencimentos e os gostos particulares de cada qual; quando todos descansam de ouvir o incessante arranhar da pena no papel e do constante vaivém da vida diária, quer das andanças realizadas por motivo da profissão, quer de todas quantas empreendem homens insatisfeitos e inquietos; quando os funcionários se apresentam a dedicar o tempo que lhes resta em distrações várias - uns no teatro, outros na rua, observando certas sombrinhas elegantes, outros ainda adorando uma bela e modesta dama, estrela de um pequeno círculo de empregados, e, ainda mais frequentemente, algum outro em casa de um colega que habita no segundo ou terceiro andar, em dois diminutos compartimentos, tais como uma antessala e uma cozinha e uma lâmpada ou qualquer outro objeto que ostensivamente pretende estar na moda e que custou muitos sacrifícios, renúncias a prazeres e divertimentos -, numa palavra, à hora em que todos os burocratas se dispersam pelas exíguas habitações dos amigos, para jogar o whist, bebendo aos golos pequenos chá com açúcar, apertando-se uns contra os outros no ambiente denso do fumo que se evola dos grandes cachimbos, contando o resultado de qualquer intriga da alta sociedade, coisa a que nunca o Russo, e em qualquer condição, pode renunciar, ou então, quando não há outro assunto, repetindo uma velha anedota acerca de um comandante a quem vieram dizer que tinha sido cortado o pescoço do cavalo do monumento de Pedro, o Grande; em suma, até nos momentos em que todos procuram divertir-se, Acaqui Acaquievich não se entregava a divertimento algum. Ninguém podia afirmar tê-lo visto num sarau.

     Depois de copiar o mais que podia, deitava-se, antecipadamente se regozijando a pensar no dia seguinte. "Que lhe ofereceria Deus para copiar amanhã?"
     Assim se escoava a vida do homem pacífico a quem bastaria uma modesta aposentação para fazer feliz e que teria de prosseguir a mesma vida até à mais proveta idade se não sucedesse qualquer das desgraças que não surgem apenas na vida de um titular, mas também na dos próprios conselheiros secretos efetivos e na dos conselheiros da coroa, inclusive na daqueles que não dão conselho algum e de quem, de resto, nem se aceitam.
     Em Sampetersburgo existe um poderosíssimo inimigo de todos os que recebem uns quatrocentos rublos de vencimentos anuais. Esse inimigo não é outro senão o frio do Inverno, que é, aliás, considerado, por alguns, muito sadio. 
     Às dez da manhã, ou seja à hora em que as ruas se enchem de todos os que se dirigem para as respectivas repartições, começa o vento a distribuir fortes zurzidelas, que cortam todos os narizes à direita e à esquerda, sem seleção de nenhuma espécie, de maneira que os pobres funcionários não sabem onde e como os podem resguardar. À hora em que até aos mais altos empregados dói a cabeça com frio e em que as lágrimas lhes saltam irresistivelmente dos olhos os pobres conselheiros titulares encontram-se, por vezes, indefesos. A única salvação consiste em caminhar o mais depressa possível, embrulhados nos finos capotes, percorrendo cinco ou seis ruas, e deixar depois arrefecer os pés na portaria, perdendo assim a única vantagem da ofegante caminhada.
     Acaqui Acaquievich andava há tempos a sentir intensas picadas nas costas e nos ombros, apesar de se esforçar por transpor as distâncias o mais rapidamente possível. Começou a pensar se o responsável disso não seria o seu capote. Ao chegar a casa, examinou-o cuidadosamente e descobriu que a fazenda estava puída em dois ou três lugares, precisamente nas costas e nos ombros, de tal modo que se tornara uma rede, e em virtude de o forro se encontrar também esgarçado. Convém saber que o capote de Acaqui Acaquievich servia também de motivo de chacota aos funcionários; chegaram até a recusar-lhe o nobre nome de capote e a chamarem-lhe capinha. 
    Tinha, efetivamente, uma forma pouco comum nos capotes, visto que a gola diminuía de ano para ano, porque era utilizada para remendar o resto. Quanto aos remendos, não demonstravam gosto algum da parte do alfaiate; demonstravam, muito pelo contrário, grosseria e fealdade.
    Tendo Acaqui Acaquievich considerado ponderadamente os prós e os
contras, decidiu-se a levar o capote a Petrovich, um alfaiate que habitava num quarto andar sem sol e que, apesar de zarolho e bexiguento, se ocupava, com bastante habilidade, em consertar calças e fraques de funcionários, isto, é claro, nos momentos em que não se encontrava em estado de completa embriaguez e não alimentava na sua cabeça outras ideias. 
    Não faria falta, dir-se-á, falar deste alfaiate, mas, já que é costume dar a conhecer plenamente em todas as histórias o caráter de uma personagem, não deve haver inconveniente em que apresentemos aqui
Petrovich. Começara por se chamar simplesmente Gregório, e era então um homem equilibrado, servo de um senhor. O nome Petrovich data da época em que alcançara a liberdade e em que dera em emborrachar-se valentemente todos os dias de festa; primeiro só nos dias grandes, e depois, sem destrinças, em todos os dias santificados, sempre que no calendário encontrasse uma cruz. Permanecia, por este lado, fiel aos costumes dos antepassados, e, ralhando com a mulher, chamava-lhe mundana e tudesca.
    Já que citamos a consorte, conviria dizer duas palavras acerca dela: por desgraça, tudo quanto se sabe a seu respeito é que era mulher de Petrovich, que usava gorro à russa e não lenço; não parecia distinguir-se pela sua beleza, e o mais que aconteceu foi encontrarem-se duma vez com ela os soldados da guarda ao regimento, mirarem-na por baixo do gorro, fazerem trejeitos com a boca e proferirem certas palavras que não podemos repetir.
    Subindo a escada que conduzia a casa de Petrovich - escada essa que, para dizer a verdade inteira, estava cheia de pequenas poças de água de cheiro nauseabundo e penetrante, vencendo esse odor estonteante que faz até arder os olhos e que, como se sabe, constitui característica inseparável de todos os andares interiores das casas de Sampetersburgo -, subindo a escada, meditava Acaqui Acaquievich naquilo que podia pedir-lhe Petrovich, e a si mesmo jurava não dar mais de dois rublos. A porta estava aberta.
     A mulher do alfaiate cozinhava peixe e provocara tal fumarada na cozinha que não era sequer possível descortinar as baratas. 
     Acaqui Acaquievich passou junto da cozinha sem que a mulher o notasse e chegou ao quarto, onde encontrou Petrovich sentado sobre uma grande mesa de madeira, com as pernas cruzadas como um paxá. Estando de pés descalços, como é costume entre sapateiros quando estão a trabalhar, despertavam atenção, pelo seu tamanho, os artelhos, bem conhecidos de Acaqui Acaquievich, com as unhas enormes, espessas e fortes como carapaças de tartaruga.
     Em volta do pescoço tinha fios de linha e de seda e estendidos nas pernas farrapos velhos de variegadas cores. Havia três minutos já que tentava enfiar a agulha, sem o conseguir, e por isso praguejava exaltadamente contra a obscuridade e contra a maldita linha, gritando em altos berros: "A imbecil não entra na agulha! Esta maldita cai-me das mãos!"
   Era para Acaqui Acaquievich extremamente desagradável chegar ali no momento exato em que Petrovich experimentava um tal assomo de cólera: preferiria encarregá-lo do trabalho noutra altura, quando tivesse perdido a fúria ou, como dizia a mulher, quando esse diabo torto estivesse adormecido pela aguardente. Nessas ocasiões, Petrovich mostrava-se relativamente afetuoso e aquiescente, chegando mesmo a conceder um cumprimento ou a agradecer. A mulher vinha, é claro, ato contínuo, a chorar, dizer que o marido estava embriagado e que, por isso, ajustara o trabalho por uma ninharia; mas, juntando dez copeques ao preço estipulado, o assunto ficava resolvido.
     Neste momento, Petrovich encontrava-se, segundo parecia, num dos seus dias de temperança, e, por conseguinte, rígido, pouco falador e disposto a pedir preços exorbitantes. Compreendendo-o, Acaqui Acaquievich ainda pensou em retroceder, sem ser visto; mas era demasiado tarde. Petrovich virou para ele o seu único olho e Acaqui Acaquievich disse, sem querer:

     - Bom dia, Petrovich!

    - Muito bom dia, cavalheiro! - replicou Petrovich, desviando o olho em direção às mãos de Acaqui Acaquievich, a ver que bela prenda lhe traria.

     - Venho a tua casa, Petrovich, efetivamente...

   Convém saber que Acaqui Acaquievich se exprimia quase sempre mediante partículas gramaticais sem qualquer significado. Se o assunto era muito complicado, tinha por costume não terminar a frase, de modo que os elementos principais da oração eram precedidos das palavras "coisa, com efeito, absolutamente ..", e calava-se depois, supondo ter já dito tudo quanto pretendia.

    - Quê? Vamos lá a ver... - interpôs Petrovich, observando naquele instante, com o seu único olho, toda a fatiota, desde a gola às mangas, desde as costas à labita e às pernas das calças, tudo tão seu conhecido, como produto da virtuosidade das suas mãos. Era o que, como um verdadeiro alfaiate, fazia antes de mais conversa.

   - Pois eu, o caso é este, Petrovich... este capote, a fazenda... como vês, está ainda boa em todos os sítios... um pouco coçada, é certo, e com aspeto de velha, embora seja nova ainda, se exceptuares neste sítio um rasgãozito, uma coisa pequena aqui... nas costas... e também aqui... neste ombro, um pouquinho puído. E só isto, vês? Não é grande coisa.
     Petrovich pegou no capote, estendeu-o em cima da mesa, examinou-o durante largo tempo, abanou a cabeça e estendeu a mão para uma velha caixa de rapé que tinha na tampa o retrato de um general, cujo nome não é possível precisar por a sua fisionomia estar suja dos dedos do possuidor.
    Depois de tomar uma pitada, Petrovich pôs o capote contra a luz e voltou a abanar a cabeça: tornou a pegar na caixa que tinha o general na tampa e, introduzindo o rapé no nariz, fechou-a e pô-la de lado, dizendo finalmente:
      - Não, não tem conserto; isto é um monte de trapos.
    Ao ouvir estas palavras, a Acaqui Acaquievich oprimiu-se-lhe o coração.
   -Por que dizes isso, Petrovich? - murmurou ele quase implorativamente, com a sua voz infantil. - Só está um pouco puído aqui nos ombros, mas tu, certamente, hás-de ter algum pedaço que...
    -Não seria essa a dúvida, ainda tenho dessa fazenda - disse Petrovich. - Mas a dificuldade reside no cosê-lo; está completamente podre, tão podre que não aguenta a linha.
     - Podes aproveitá-lo, cosendo uns remendos por cima.
    - Uns remendos por cima! Mas não se segura numa fazenda neste estado! O próprio vento é capaz de o arrancar.
    - Nesse caso, reforça então a fazenda por dentro, e ficará bem...
   - Não - objetou Petrovich com decisão -, nada se pode fazer. O melhor, visto que se aproxima agora o maior frio do Inverno, será você fazer umas polainas desta fazenda. Sempre lhe resguardarão as pernas melhor do que as meias, que são apenas invenção dos Alemães para ganhar dinheiro.(Agradava a Petrovich aproveitar a ocasião para insultar os Alemães.)- Quanto ao capote, o melhor é mandar fazer um novo.
   Ao ouvir a palavra "novo", toldaram-se os olhos de Acaqui Acaquievich, que começou a ver andar à roda de si tudo quanto se encontrava naquela sala.
     Só via claramente a figura do general na caixa do rapé.
   - Novo? - dizia como em sonho. - Desgraçadamente, não tenho dinheiro para tal.
    - Sim, novo - repetia Petrovich com uma calma brutal.
    - E, sendo novo, a quanto montaria? - Quanto custaria?
    - Teria de gastar uns cento e cinquenta rublos - disse Petrovich, cerrando os lábios.
   Era partidário dos efeitos fortes; agradava-lhe desconcertar por completo alguém e lançar um olhar de soslaio para observar a cara do assustado ao ouvi-lo.
     - Cento e cinquenta rublos pelo capote! - exclamou o pobre Acaqui
Acaquievich, sendo talvez este o primeiro grito desde que nasceu, já que, geralmente, se conservava em silêncio.
   - Naturalmente - afirmou Petrovich. - E isso conforme seja o capote. Se levar gola de marta e bandas de seda, atira a uns duzentos.
   - Por Deus, Petrovich! - disse Acaqui Acaquievich com voz suplicante, sem escutar nem pretender considerar as palavras de Petrovich ou os seus efeitos.- Arranja-me este como puder ser, para que ainda me sirva algum tempo.
    - De modo nenhum; seria perder trabalho e dinheiro - respondeu Petrovich.
   Depois de ouvir aquelas palavras, Acaqui Acaquievich saiu, acabrunhado.
     Petrovich viu-o caminhar pela rua e permaneceu largo tempo de pé, com os lábios cerrados, sem fazer caso do trabalho, tal era o seu contentamento por não se ter rebaixado nem traído a sua nobre arte de alfaiate.
     Quando Acaqui Acaquievich chegou à rua, encontrava-se como num sonho.
     "Alguém viu já semelhante coisa?", dizia ele com os seus botões, "Nunca pensaria que podia chegar a tal..." E logo, após um silêncio, acrescentou: "Ora aí está! Cheguei finalmente a isto! Nunca teria suposto que fosse assim." E, depois de outro largo silêncio, voltou a exclamar: "Assim é, pois! Já não há esperança possível... Acabou-se... As circunstâncias requerem-no!"
    E, dito isto, em vez de ir para casa, seguiu na direção contrária, sem se dar
de maneira alguma conta disso.

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