OS MORTOS - JAMES JOYCE - PARTE 3 / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO / REVISTA BRAVO - 2009

         OS MORTOS - JAMES JOYCE / PARTE 3

     __ Galochas! - exclamou Gretta - É a última moda. Sempre que o chão estiver úmido tenho de calçar galochas. Queria que eu as pusesse esta noite! Mas isso ele não conseguiria. Logo vai me comprar um escafandro...
     Gabriel sorriu contrafeito e alisou a gravata para reassegurar-se, enquanto tia Kate quase se dobrava ao meio de tanto rir. Mas tia Júlia logo ficou séria e seus olhos tristonhos voltaram-se para o rosto do sobrinho.
      __ Que são galochas, Gabriel? - perguntou ela.
      __ Galochas! - exclamou a irmã. __ Meu Deus, não sabe o que são galochas? É para calçar sobre... sobre os sapatos, não é, Gretta?
    __ Isso mesmo, tia Kate. Uma espécie de guta-percha. Por enquanto temos dois pares. Gabriel diz que todo mundo está usando no Continente.
      __ Oh, no Continente - murmurou tia Júlia, meneando a cabeça.
    Gabriel enrugou a testa e disse, como se estivesse um pouco agastado:
      __ Não é nada de extraordinário. 
    Gretta acha engraçado porque a palavra a faz lembrar-se dos bufões.
     __ Diga-me, Gabriel - interveio tia Kate com muito tato. __ Por certo já arranjou acomodação. Gretta estava dizendo...
     __ Tudo está arrumado - respondeu Gabriel. - Reservei um quarto no Gresham.
     __ Ótimo. É o melhor que podia fazer. E as crianças? Gretta não fica preocupada?
     __ Ora, tia Kate - disse Gretta -, só por uma noite!
     Além disso Bessie cuidará delas.
     __ Ótimo - repetia tia Kate. - É um sossego a gente ter uma moça como ela em quem se pode confiar! Lily, por exemplo, não sei o que está acontecendo com ela. Não é a mesma menina de antes.
    Gabriel ia arriscar algumas perguntas a esse respeito, mas tia Kate calara-se repentinamente para olhar a irmã que descera alguns degraus na escada e curvava-se na balaustrada.
      __ Mas onde é que Júlia vai? Exclamou, em tom quase irritado. __ Júlia! Júlia! Onde é que você vai?
    Júlia que descera quase um lance de escada, retornou e anunciou calmamente:
       __ Freddy chegou. 
    Nesse momento, o rumor de aplausos e o floreio final do pianista anunciaram que a valsa terminara. A porta do salão abriu-se e alguns pares saíram.
      Tia Kate puxou apressadamente Gabriel para o lado e murmurou-lhe ao ouvido:
       __ Por favor, corra lá embaixo e veja se Freddy está bem. Não o deixe subir se estiver embriagado. Tenho certeza de que está bêbado, tenho certeza.
    Gabriel aproximou-se da escada e ficou escutando. Duas conversavam na saleta. Reconheceu então a risada de Freddy Malins. Desceu a escada ruidosamente.
      __ É um alívio tê-lo conosco - disse tia Kate à senhora Conroy. __ Sinto-me sempre mais tranquila quando Gabriel está aqui... Júlia, a senhorita Daly e a senhorita Power gostariam de tomar um refresco. Obrigada pela linda valsa, senhorita Daly. A execução foi maravilhosa.
     Um homem alto e moreno, de rosto enrugado, bigode rijo e grisalho, que passava por ali com seu par, perguntou:
      __ E nós, senhorita Morkan, podemos também nos refrescar?
     __ Júlia - disse Kate prontamente -, leve também o senhor Browne e a senhorita Furlong.
      __ Sou o servo dessas damas - disse Browne, sorrindo com todas as rugas, até eriçar os pelos do bigode. __ Sabe por que elas gostam tanto de mim, senhorita Morkan...
     Não terminou a frase. Vendo que tia Kate estava longe demais para ouvi-lo, conduziu as três jovens para a sala dos fundos. O meio da sala estava ocupado por duas mesas unidas, sobre as quais tia Júlia e o zelador estendiam uma larga toalha. No guarda-louças empilhavam-se pratos, travessas, copos e talheres. O piano quadrado servia de prateleira para os doces e salgados. No canto, em pé junto a um pequeno bufê, dois rapazes tomavam refrescos.
      Browne dirigiu para lá o seu séquito e convidou-as a beberem um ponche, especial para senhoras, quente, forte e açucarado. Como responderam que não tomavam nada forte, abriu três garrafas de limonada. Pediu então a um dos rapazes que se afastasse e, apanhando a garrafa de uísque, despejou uma dose reforçada. Os rapazes olhavam--no com respeito, enquanto ele provava a bebida.
      __ Que Deus me proteja - comentou sorrindo. __ São ordens do médico.
     Seu rosto encarquilhado abriu-se num sorriso mais amplo e as três jovens responderam ao gracejo com um riso musical, sacudindo nervosamente os ombros e balançando o corpo para a frente e para trás. A mais arrojada disse-lhe:
    __ Ora, senhor Browne, estou certa de que o médico nunca lhe receitou tal coisa.
     Browne tomou outro gole e respondeu com desajeitada mímica:
    __ Bem, você sabe. Sou como a famosa Madame Cassidy, que afirmam ter dito o seguinte: Por favor, Mary Grimes, se eu não tomar, faça-me tomar, pois sinto que quero tomar.

(Tradução de Hamilton Trevisan)

0 comentários:

Postar um comentário