O JUDEU DA BABILÔNIA - ISAAC BASHEVIS SINGER / CONTO


           O judeu da Babilônia
   O judeu da Babilônia, como era chamado o milagreiro, viajou a noite inteira na carruagem que o levava de Lublin ao vilarejo de Tarnigrod. O cocheiro, um sujeito baixinho e de ombros largos, permaneceu em silêncio durante toda a jornada. Cabeceava de sono e chicoteava o matungo, que andava devagar, passo a passo. A velha égua aprumava as orelhas e olhava para trás com seus olhos grandes, que exprimiam curiosidade humana e refletiam o brilho da lua cheia. Parecia indagar‑se sobre aquele passageiro estranho, que trajava um casaco de veludo com forro de pele e tinha um chapéu também de pele na cabeça. Chegou mesmo a franzir o beiço escuro, forjando uma espécie de sorriso equino. O milagreiro estremeceu e murmurou uma fórmula mágica, levando o cocheiro a se dar conta de como seu passageiro era perigoso.
   “Anda, égua preguiçosa!”
   A carruagem passou por campos arados, montes de feno e um moinho de vento, o qual, girando lentamente, surgia, desaparecia e ressurgia. Seus braços abertos davam a impressão de apontar‑lhes o caminho. Uma coruja piou e uma estrela cadente se desprendeu do céu, deixando um rastro ígneo atrás de si. O milagreiro se enrolou em seu xale de lã.
   “Ai de mim!”, gemeu. “Já não sou páreo para eles.”
   Referia‑se aos seres infernais, os demônios aos quais dera combate a vida inteira. Agora que estava velho e fraco, começavam a vingar‑se dele.
   Chegara à Polônia cerca de quarenta anos antes — um homem alto, magro como um palito, envergando uma túnica comprida, listrada de amarelo e branco, e calçando as sandálias e as meias brancas usadas pelos judeus do Iêmen e de outros países árabes. Dizia chamar‑se Kaddish ben Mazliach — um nome estranho — e ter aprendido a arte da clarividência e da cura na Babilônia. Curava a insônia e a demência, exorcizava dibukim e sabia como ajudar os homens recém‑casados que sofriam de impotência ou que eram alvos de feitiços lançados pelo Mau‑Olhado. Possuía também um espelho negro, no qual podiam ser vistos os desaparecidos e os mortos. Vivia como judeu devoto — nem nas noites frias de inverno se esquivava de frequentar
as gélidas casas de banhos rituais e jejuava às segundas e quintas‑feiras —, porém os rabinos e demais líderes comunitários o evitavam, acusando‑o de ser um feiticeiro, um mensageiro do Exército Impuro. Corriam rumores de que tinha uma esposa mal-afamada em Roma, exatamente como tivera em seus dias o Falso Messias, o amaldiçoado Sabatai Tzvi. Em toda e qualquer cidade a que chegava, escondiam‑se as mulheres grávidas, a fim de que seus olhos não pousassem nelas; e às moças se prescrevia o uso de aventais duplos, um na frente e outro atrás, como forma de proteção. Os pais não deixavam que seus filhos olhassem para ele. Em Lublin, onde após muitos anos de errância Kaddish se instalou na velhice, não o aceitaram no bairro judeu e vetaram sua entrada nas sinagogas e nas casas de estudos, obrigando‑o a ir morar na periferia da cidade, num casebre caindo aos pedaços. Sua aparência era deplorável. Tinha um rosto comprido, muito vermelho, e a pele escamosa. A barba desgrenhada voltava‑se para todos os lados, como se sob o efeito de um vento incessante. Não abria o olho direito; dizia‑se que tinha sido cegado pelo

medo. Suas mãos tremiam e, tal qual um bebê recém‑nascido, ele não conseguia sustentar a cabeça com firmeza. Eruditos e cabalistas havia muito o advertiam de que estava brincando com fogo e que os poderes do mal não o deixariam escapar facilmente.
   Na soturna noite de outono, Kaddish se encolheu no assento da carruagem, ao lado da sombra comprida que viajava com ele, e balbuciou: “Uma seta há de furar seus olhos, Satã, Kuzu, Bemuchzas, Kuzu”.
    Nascido na Terra Santa, filho de um judeu sefardita polígamo e de sua jovem esposa surda‑muda, uma tártara convertida ao judaísmo, Kaddish ben Mazliach errara pelo mundo com seus camafeus e fórmulas mágicas. Estivera na Pérsia, na Síria, no Egito e no Marrocos. Vivera em Bagdá e em Bukhara. Curava não somente judeus, mas também árabes e turcos, e, ainda que em Lublin os rabis poloneses o houvessem excomungado e ele fosse tratado como um leproso, continuava a ter poderes de cura e magia. Amealhara ao longo da vida um punhado de diamantes e pérolas, os quais levava num saquinho preso ao pescoço, por baixo da roupa. Nunca perdera a esperança de, ao chegar à velhice, penitenciar‑se e regressar à terra de Israel. Porém a sorte nem sempre lhe era favorável. Fora vítima, com alguma frequência, de salteadores que o surravam e levavam seu dinheiro. Casara‑se algumas vezes, mas as mulheres tinham medo dele e o forçavam a procurar os rabinos para pedir o divórcio — e ele as deixava.
   Justo agora que sua saúde fraquejava, os maus espíritos haviam começado a atormentá‑lo, vingando‑se de todas as vezes em que ele os sobrepujara com sua magia. Fazia alguns anos que ele não conseguia dormir uma noite inteira em paz. Tão logo cochilava, ouvia risadas femininas e sons de melodias nupciais, entoadas burlescamente por demônios‑fêmeas,
com um acompanhamento de violinos. Não raro duendes vinham puxar‑lhe a barba e os cachos laterais ou bater na vidraça de suas janelas. Em outras ocasiões, faziam troça dele, mudando suas coisas de lugar. Desfiavam seu xale de orações e suas roupas guarnecidas com franjas. Moças nuas e descalças, com tranças que chegavam à cintura, sentavam‑se em sua cama e riam, exibindo os dentes brancos no escuro. Roubavam suas moedas de ouro — ele sentia os dedos delas no bolso interno do paletó. Passavam mechas de cabelos em volta de seu pescoço, como se pretendessem estrangulá‑lo,
choramingando e pedindo tão insistentemente que ele se entregasse
a elas que Kaddish chegava a desmaiar.
   “Kaddish”, diziam, “o Outro Mundo de qualquer forma você já perdeu. Renda‑se, venha juntar‑se a nós.”
    Kaddish sabia que havia hordas de lapiutes esperando que ele morresse para se apoderar de sua alma pecadora e fazê‑la em pedacinhos. Mais de uma vez, ao examinar a inscrição de sua mezuzá, verificou que as palavras sacras haviam sido apagadas do pergaminho. Seus livros cabalistas eram roídos por ratos e traças. O couro de seus filactérios rachava e estes se partiam. Conquanto seu casebre na periferia de Lublin fosse aquecido, havia um frio perpétuo no ar, e os cômodos eram escuros como um porão. Para não ser roubado, Kaddish escondia seus pertences em arcas cobertas com peles e reforçadas com cintas de cobre, porém isso de nada adiantava. Nenhuma criada judia se dispunha a trabalhar para ele. A velha faxineira gentia que fazia a limpeza da casa pendurava crucifixos nas paredes e trazia consigo um gato indócil e um cão traiçoeiro. Para não comer nada que não fosse kosher, Kaddish preparava ele mesmo as refeições, porém os duendes e diabretes jogavam punhados de sal nos pratos, impedindo‑o de levar a comida à boca. 
   Nos dias santos as coisas ficavam ainda piores. Ao entardecer de sexta‑feira, véspera de Shabat, ele cobria a mesa com uma toalha manchada e acendia duas velas espetadas em castiçais foscos, mas elas invariavelmente se apagavam.
Sonhava usar o poder da cabala para criar pombos e extrair vinho das paredes, porém nos últimos tempos seus milagres eram cada vez mais raros. Sua memória se deteriorara tanto que ele se esquecia de que não era permitido fazer fogo no Shabat, e punha‑se a fumar seu cachimbo. O cachorro rosnava para ele e tentava mordê‑lo. Até os coelhinhos que a mulher criava tinham ficado insolentes e subiam em sua cama. Não era de admirar que aceitasse todo e qualquer pedido para realizar magias, curas ou adivinhações, por demorada ou difícil que fosse a viagem.
   “Perdido eu já estou. Oxalá possa ao menos salvar uma alma”, concluía.
   Agora estava a caminho do vilarejo de Tarnigrod, atendendo a uma solicitação do rico reb Falik Chaifetz, cuja residência, uma casa construída recentemente, de súbito começara a apodrecer com fungos e tinha cogumelos selvagens brotando nas paredes. Apesar de estar sentado, Kaddish dormitava na carruagem. A cabeça pendia por causa do cansaço, e ele ressonava com um assobio surdo. Quando amanheceu, o céu se incendiou inteiro, e sobre a estrada caiu uma neblina densa, como se eles estivessem se aproximando do mar aberto. O cocheiro agora andava cautelosamente ao lado da carruagem, passo a passo, pois lhe haviam recomendado que não sentasse muito perto do mago. Apenas quando a égua se alvoroçava — empinando e relinchando — era que a chicoteava e repreendia: “Calma, égua velha! Não se meta no que não é chamada!”.
   Kaddish passou o dia inteiro na casa parcialmente desocupada de reb Falik Chaifetz, preparando as simpatias e os amuletos necessários à purificação da moléstia que se apossara daquele lar. A umidade nos aposentos era tamanha que as paredes estavam recobertas de manchas amarelas. Kaddish tinha certeza de que havia um mau espírito escondido em algum lugar, quem sabe num lenço com nós de feiticeira ou num camafeu com nomes ímpios ou nos cabelos de um doido. Tão logo entrara na casa, sentira um bafo pestilento. Era evidente que o espírito de um inimigo se alojara ali — dissimulado, obsceno e extremamente perverso. Com uma vela na mão, Kaddish procurara em todos os cantos da casa. Inspecionou a chaminé, o fogão, e cutucou rachaduras e reentrâncias fuliginosas. Subiu a escada em espiral que levava ao sótão e depois desceu até o porão. Reb Falik o acompanhou pela casa inteira. Kaddish ateou fogo a todas as teias de aranha, e tarântulas de ventre branco se dispersavam quando seus lábios azulados se punham a murmurar fórmulas mágicas. Ele cuspia em todos os lugares onde o invisível pudesse estar à espreita.
  Era, talvez, sua última e mais decisiva batalha contra os maus espíritos. Se não capitulassem dessa vez, como haveriam de ser expulsos para o deserto, atrás das montanhas negras, para todo o sempre?
  Kaddish chegara clandestinamente a Tarnigrod. Assim ficara ajustado entre ele e reb Falik Chaifetz. No entanto, os habitantes do vilarejo tomaram conhecimento de sua vinda. Mesmo antes da chegada do milagreiro, muitos deles se aglomeravam em frente à residência de reb Falik. As mulheres, em pequenas rodas, apontavam para Kaddish e cochichavam. Os jovens mais atrevidos subiam nos ombros uns dos outros e tentavam espiar por entre as lâminas das venezianas cerradas. Alguns camponeses traziam seus aleijados, seus epilépticos, seus loucos e seus coxos. Uma mãe carregava no colo o filho convulsionado, seus olhos revirando nas órbitas. Um pai arrastava atrás de si o filho maluco, preso qual um animal a uma carroça. Uma mulher trazia uma rapariga em cujo rosto despontavam fios de barba.
   Reb Falik Chaifetz saiu e alertou as pessoas que ali não se procederia a nenhuma cura. Implorou que fossem embora, porém a aglomeração se tornou ainda maior. Kaddish abriu uma janela no andar de cima, pôs para fora a cabeça despenteada e pediu: “Minha gente! Estou fraco. Não me atormentem”. Todavia recebeu os enfermos e aleijados durante todo o dia. Ele queria partir o quanto antes. Mas quando já caía a noite o sacristão apareceu de supetão e anunciou que o rabino desejava vê‑lo. Kaddish foi com ele até a casa do rabi, onde as persianas já tinham sido fechadas. Trajando um roupão preto, o velho rabi tinha o chapéu inclinado na cabeça e uma cinta grossa na cintura. Olhou para o mago com uma expressão feroz, medindo‑o dos pés à cabeça, e inquiriu: “É o infame Kaddish ben Mazliach que está diante de mim?”.
   “Sim, rabi.”
   “Seu nome, Kaddish, significa sagrado, mas você é impuro e corrupto”, bramiu o rabino. “Não pense que o mundo dorme. Você é um feiticeiro que anda com os mortos.”
   “Não, rabi.”
   “Não negue.” O rabino bateu o pé no chão. “Sei que invoca demônios. Não toleraremos isso em silêncio.”
    “Eu sei, rabi.”
   “Lembre‑se, ainda vai se arrepender!”, esbravejou o rabino, e pegou seu cachimbo comprido como se pretendesse atingir a cabeça de Kaddish. “Vagará por centenas de anos entre demônios e nem no Inferno poderá entrar. O mundo não é só caos!”
    Kaddish estremeceu, tentou responder, perdeu a língua. Queria falar da enorme quantidade de pessoas que salvara da morte. Levou a mão ao bolso onde guardava as cartas que recebia de pacientes agradecidos, cartas escritas em hebraico, ladino, árabe e mesmo iídiche, porém não conseguia mover os dedos. Saiu correndo, as pernas bambas, ouvindo
vozes e risadas. Não via para onde estava indo.
    Decidiu retornar imediatamente a Lublin, porém agora o cocheiro se recusava a levá‑lo de volta. Kaddish não teve alternativa senão passar a noite ali, na casa vazia em que permanecera o dia inteiro. A empregada de reb Falik Chaifetz levou‑lhe lençóis, um castiçal com uma vela grossa, uma chaleira com água quente, pão e uma tigela de borshtch.
    O judeu da Babilônia tentou comer, mas não conseguia engolir. Parecia‑lhe ter a cabeça cheia de areia. Apesar de as janelas estarem fechadas, um vento gelado varria o aposento. A chama da vela bruxuleava e sombras tremulavam nos cantos, rastejando qual serpentes. Escaravelhos grandes e lustrosos se arrastavam pelo chão e sentia‑se um cheiro podre no ar. Kaddish deitou‑se ainda vestido na cama. Dormitou um pouco e viu‑se na cidade cabalista de Sfat. Sua mulher iemenita se ajoelhava diante dele, tirava‑lhe as sandálias e lavava‑lhe os pés, bebendo a água da bacia em seguida. De súbito ele foi arrancado da cama, como se um terremoto houvesse eclodido. Todas as luzes se apagaram. No escuro, as paredes pareceram expandir‑se, e os cômodos começaram a balançar e a se mover de um lado para o outro, como um navio em mar revolto. Figuras barbadas, com
chifres e focinhos, empurravam‑no, rodando como lobos à sua volta. Morcegos voavam acima de sua cabeça. Tudo rangia e estalava, como se a casa estivesse prestes a vir abaixo. Como sempre fazia quando as criaturas noturnas se apoderavam dele, Kaddish abriu a boca para exorcizá‑las, mas pela primeira vez na vida se esquecera de todos os nomes e imprecações. Seu coração parecia ter parado, sentia os pés ficando frios. O saquinho que sempre trazia pendurado ao pescoço foi arrancado, e ele ouviu as moedas de ouro, as pérolas e os diamantes se esparramando pelo chão.
    Quando finalmente conseguiu sair para a rua, Tarnigrod parecia adormecida. Uma lua sangrenta cintilava sob a tez das nuvens. Bandos de cães, que dormiam durante o dia e rondavam os açougues à noite, latiam para ele de todos os lados. Kaddish ouvia atrás de si os passos de uma multidão desgovernada. Um vento forte o colheu por baixo do casaco e ele começou a voar. Luzes pareciam acender‑se, e ele ouvia músicas, tambores, gargalhadas. Compreendeu que se tratava de um casamento e que ele, Kaddish, era o noivo. Vinham em sua direção, dançando sobre pernas de pau, gritando: “Mazel tov, Kaddish!”. Era evidente que os maus espíritos o estavam dando em casamento a um demônio‑fêmea. Aterrorizado, e reunindo o que restava de suas forças, ele conseguiu exclamar: “Shadai, destrua Satã, Shadai!”.
    Tentou fugir, porém seus joelhos fraquejaram. Foi cingido por braços compridos, que o beliscavam, puxavam, faziam‑lhe cócegas, apertavam‑no e o socavam como se ele fosse massa de padeiro. Era o convidado da festa, a razão daquela alegria impura. Agarravam‑se a seu pescoço, beijavam‑no, acariciavam‑no, violentavam‑no. Espetavam‑no com seus chifres, lambiam‑no, afogavam‑no em baba e saliva. Uma mulher gigante o estreitou contra seus seios nus, depositou todo o peso de seu corpo sobre ele e suplicou:
    “Não me envergonhe, Kaddish. Diga: ‘Com este anel negro, caso‑me contigo, segundo a blasfêmia de Satã e Asmodeu’”.
    Com os ouvidos ensurdecidos, Kaddish escutava um estardalhaço de vidros se quebrando, pés que batiam no chão, gargalhadas licenciosas e gritinhos estridentes. O esqueleto de uma avó, com pés de ganso, dançava com uma chalá trançada nas mãos e dava cambalhotas, pronunciando os nomes de Chavriri, Briri, Ketev‑Mriri. Kaddish fechou os olhos e, pela primeira e última vez, soube que era um deles, um consorte de Lilith, a rainha do Abismo.
    Pela manhã, encontraram‑no morto, deitado de bruços no meio de um descampado, não muito longe do povoado. Tinha a cabeça enterrada na areia, os braços e as pernas estendidos, como se houvesse despencado de grande altura.

ISAAC BASHEVIS SINGER. A MORTE DE MATUSALÉM E OUTROS CONTOS



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