GOLPE DO CHEQUE (uma alegoria) - Hilton Görresen

Alguém aí já foi vítima de um golpe do cheque? Pois nem lhes conto. Estava andando tranquilamente pela cidade, quando, de súbito, fui golpeado traiçoeiramente por um cheque. Quando me refiz da surpresa, vi que era um cheque meio desbotado, com duas listras paralelas no peito. Era de pouco valor, desses que se encontram por aí às dezenas. 
Quis revidar a agressão atacando-o com meu cartão de crédito, mas isso poderia humilhá-lo. Não é bom, a classe dos cheques anda tão desacreditada. Suas vestes estavam amarrotadas e as calças remendadas, sem fundilhos suficientes. Podia ser um elemento perigoso, quem sabe por quantas mãos havia transitado ou, pelo escasso valor, tivesse sido jogado diretamente em uma latrina. 
Depois, parece que se arrependeu de seu ato violento e me pediu desculpas. Estava desesperado. Creio que foi uma lágrima que lhe borrou a assinatura. Havia sido um cheque de respeito, cheque especial, aceito em todos os lugares, associado de clubes e de grandes convênios. Possuía credibilidade até no exterior. Passou por vários planos governamentais, até que lhe deram uma rasteira. Um dia, foi recusado num boteco de terceira categoria. Aquilo foi um golpe irrecuperável. De sua saudável cor verde-amarela, foi definhando para um verde desbotado. E agora se encontrava nessa situação. Ultimamente tinha dormido num abrigo para inadimplentes.
Aquilo estragou meu dia. Confesso que ignorava a situação aflitiva da classe dos cheques. Muitas vezes passavam pelo vexame de serem carimbados e recarimbados na traseira e empilhados com todo tipo de documentos desclassificados, numa promiscuidade de bacanal romana. Como você, leitor, se sentiria levando carimbo na traseira? 
Com pena dele, sugeri que se inscrevesse no programa “Meu talonário minha vida” ou mesmo fizesse um curso no Pronacheque, a fim de dar um rumo melhor em sua vida. Seus contornos cansados se inflaram por um momento, parece que seu exíguo valor se ampliou um pouco. Me agradeceu e saiu cambaleando, enfraquecido que estava pela falta de lastro. 
E fiquei ali matutando sobre a condição existencial dos cheques. Muitos deles atingem o auge e se acham os donos do mundo, esquecendo que o destino é imprevisível, é o ascensorista de Deus; a subida é o prenúncio da queda (em outras palavras, tudo o que sobe, um dia desce). Os cemitérios dos cheques estão cheios de faustosos mausoléus, que certamente não servem de consolo àqueles que estão debaixo deles.

Crônica publicada no Jornal Notícias de Dia, de 12.11.2014

0 comentários:

Postar um comentário