Setenta e duas horas... Duas semanas... Conto: Odenilde Nogueira Martins

Setenta e duas horas... Duas semanas...

Antes mesmo de dezembro começar, a família já se organizava em torno do dia vinte quatro: quem faria o quê, onde seria feito e, na casa em que a reunião aconteceria, logo no inicio do mês natalino, montava-se uma árvore e, sob ela, dia a dia, eram deixados pequenos embrulhos com o nome de alguém.

No entanto, o mês do nascimento de Cristo iniciara-se e nada havia sido falado. Nem a árvore de cujos galhos penderiam bolinhas coloridas, havia sido montada na casa de alguém. A todos faltava ânimo. Não se viam preparativos em torno da ceia. Ninguém falava que rechearia o peru. Pior! Não havia a matriarca falando sobre as sobremesas que faria, atenta ao que cada filho gostava. Todos estavam desarticulados como uma orquestra sem seu maestro. Prelúdios de um Natal atípico em uma família de origem italiana onde se fazia questão de fartura. 

– Minha irmã, eu e a Miranda estivemos conversando, e ela me disse que devemos montar o pinheirinho. Fazer um maior e mais bonito do que o do ano passado. Eu disse que não achava uma boa ideia, já que a mãe não vai estar aqui, mas ela insistiu. O que você acha? – perguntava Leandro à irmã mais velha.

– Eu acho que a Miranda tem razão. A vida deve continuar o mais normal possível.

– Então, vamos montar hoje. Ainda acho que não vai trazer nenhuma alegria. Que nosso Natal será muito triste. 

– Quem garante que não? Quem sabe não tenhamos muito mais motivos para celebrar o nascimento de Cristo? Vamos levar como se tudo estivesse em seu devido lugar para ver aonde vai dar!

– Será que vai ter clima? O que eu queria mesmo, era pular este final de ano. Ir do dia 20 para 02 de janeiro.

– Calma, meu irmão! Acho que teremos um grande Natal. Que, apesar de toda a luta que teremos pela frente, estaremos unidos como nunca estivemos. Não te esqueças de que nossa mãe é cerne puro!

– É verdade! Se ela está lutando, nós não podemos esmorecer.

– Claro! Lembra das terríveis e setenta duas horas? Ela venceu! As duas semanas seguintes, que seriam extremamente críticas? Ela venceu todas as dificuldades que surgiram, dores musculares, falta de ar, infecção urinária, pseudo-aneurisma. Então, como não será o Natal mais feliz de nossas vidas?

Dez dias antes dessa conversa, não conseguia entender a sua incapacidade de ver a fragilidade daquela mulher. Para ela, a velhice, a fraqueza muscular e óssea, a carência de atenção, foram imperceptíveis. Ela era uma mulher forte, altiva e independente.

– Seis filhos e ninguém pra me socorrer! – foi o que disse, ainda de maneira clara.

Era terça-feira, 11h30, quando entrou em casa, o celular, que havia deixado sobre a cama, estava tocando. Era um de seus irmãos, que sequer conseguia lembrar qual, dizia-lhe:

– Nossa mãe está aqui no Hospital Santo Antônio. Ela está muito mal.

O resto de que foi falado, também não se recordava. Se é que algo mais foi dito. Incapaz de entender o que estava acontecendo, viu-se diante do hospital.

“Minha mãe em um hospital!” – pensava incrédula. Aquela mulher, que sempre vira como uma rocha, em um hospital?

“Deve ser um engano ou um afobamento de meu irmão que sempre foi muito medroso quando o assunto é saúde” – tranquilizava-se.

Como atravessou a rua? Não sabe. Passando pelo portão, viu seus irmãos. Era claro o desespero no rosto de cada um. Leandro estava sentado sobre uma mureta com o rosto encravado entre as mãos, soluçando convulsivamente. 

“Meu Deus! O que era aquilo tudo? Minha mãe! Imagine! Eles devem estar dramatizando!” – tentava convencer-se.

– O que aconteceu? Por que a mãe está aqui?

– Ela teve um AVC – respondeu uma das irmãs. – Nós te ligamos muitas vezes, deixamos mensagens, mas você não atendia.

Ela e sua maldita mania de achar que não devia levar celular para a escola, já que era expressamente proibido o uso do aparelho pelos alunos. Amaldiçoou o seu senso de “certo” e “errado”, a sua obsessão em cumprir regras! 

– Às 05h me levantei pra ir ao banheiro, vi a luz do quarto dela acesa e pensei: “A mãe tá se levantando agora, dá pra dormir mais um pouco. E voltei pra cama.” Às 07h, 07h e pouco, levantei pra me arrumar pra trabalhar, olhei pela janela, vi que a porta estava fechada e a cuia de chimarrão estava em cima da mesa como ela tinha deixado na tarde anterior. Chamei:

– Vó! Tá tudo bem? – ouvi ela resmungar e pensei: “Tá no banheiro escovando os dentes.” Fui no muro e chamei novamente e ela resmungou. Pensei que ela estivesse mesmo escovando os dentes. Entrei, terminei de me arrumar, peguei a moto e falei pra Miranda: – Venha junto. Vamos passar na mãe pra ver se está tudo bem. A Miranda entrou e eu fiquei no portão, em cima da moto. A Miranda olhou pela janela do quarto e ela estava caída no chão. Arrombei a porta, deixei a moto, peguei o carro e levei pro PA. É o mais perto. O médico examinou, botou na ambulância e veio acompanhando. Disse que ela teve um AVC e que o atendimento nas quatro primeiras horas era muito importante pra recuperação dela. Quanto tempo ela estava caída? Por que eu não fui lá quando vi a luz acesa? Por quê? Meus Deus! Por que eu não fui lá antes! – lamentava-se, desesperado.

– Estava na casa dela e fui dormir na casa da minha cunhada ao invés de ficar ali. Falei pra ela: “- Vó, eu vou dormir lá na Cátia. Amanhã, bem cedo, ela me ajuda a passar veneno no terreno e, depois, venho limpar a tua casa. Ela me disse: “Pode ir”. Ela estava bem! Se eu tivesse ficado, ela tinha sido socorrida antes. Por que eu não fiquei! – dizia em pranto uma das irmãs.

Por que, por que... Por quê? As culpas começaram a ser confessadas, pensava que era a forma de se aliviar o desespero. Como não perceberam que a mãe estava vulnerável, que tinha envelhecido? Setenta e seis anos! E achavam que nada lhe aconteceria! Refletia, agora, que existe uma incapacidade de se perceber que os pais são mortais, assim como quando jovens, os filhos veem a mãe como um ser assexuado. Não se enxerga a mulher com necessidades de mulher. Acha-se que mãe sempre vai estar por perto para confortar e segurar a barra, inquebrável, forte, inatingível pelas mazelas, que, no dia a dia, atingem outras mães! A deles não! A deles viveria para sempre! Triste engano!

– Agora não adianta chorar sobre o leite derramado – disse aos irmãos. Estamos nos deparando com a realidade. Completamente desprotegidos e cheios de culpas. A nossa mãe poderá não mais estar por perto para perder sono, preocupada por causa de um dos filhos. Sofrer porque sofremos, sempre vigilante as nossas falhas, aos nossos problemas. Chegou a nossa vez de provar a aflição que ela experimentou muitas vezes. Que Deus tenha piedade de nós!

A mulher que jamais se arcara, estava ali... completamente indefesa e podia deixá-los em um segundo! Como lidar com essa verdade? Tirar forças de onde se era ela quem sempre fazia isso?

“Ah! Dona Teresa! Que vida a tua!” As lembranças corriam por sua cabeça. Estava diante dela, a mulher alta, forte e altiva apesar de todos os de sofrimentos que já vivera: seis filhos, marido alcoólatra que a espancava. Viveu com ele uma vida de tristezas. “Seis filhos, tinha de aguentar!” - dizia quando perguntavam por que não o deixara! Viúva aos vinte nove anos! O marido morrera, vítima de cirrose hepática, aos quarenta e três anos. Não precisariam mais, no meio da noite, socorrer-se em casa do primeiro vizinho que lhes abrisse a porta. Aquele tempo acabara finalmente! Vida nova!

– Eu estava aqui me lembrando de quando nosso pai morreu – falava mais para si mesma. - Nem consegui sentir, verdadeiramente, sua morte. O que senti foi certo alívio. Lembro-me de que, chegando em casa, após o enterro, sentei-me com o José, Maria e Terezinha e, aos doze anos, planejei como seria nossa vida sem nosso pai, sem tristeza – calou-se, ninguém estava ouvindo, cada qual isolado em seus pensamentos.

– Vocês têm de concordar! É a única chance que ela tem – dizia o neurologista, enquanto, correndo acompanhado de um enfermeiro, levavam-na para a hemodinâmica do hospital para realizar um procedimento de risco. Uma tentativa de desobstruir uma veia no cérebro.

– Nós concordamos! – responderam.

– Doutor, quanto tempo ela vai ficar aí? – perguntou a mais velha dos filhos.

– O resto da tarde – respondeu o médico, entrando na sala onde seria realizado o tal procedimento.

Os irmãos resolveram sair da frente da sala, pois não poderiam estar em tantos ali. Só era permitida a permanência de uma pessoa. Dirigiram-se ao pátio interno do hospital. Transcorrida uma hora, resolveram voltar. A mãe já não estava mais lá, voltara para a emergência.

– O médico disse que ela ia ficar a tarde toda – alguma coisa acontecera. 

Saíram em disparada em direção à emergência. O médico veio explicar que fora mal sucedido.

– A aorta dela é muito sinuosa. Não deu para passar do pescoço. Não esperem melhora – disse e se retirou.

Nenhuma palavra foi articulada, só se ouvia o choro dos filhos, que olhavam estarrecidos para aquele homem que falava com tanta naturalidade que a mãe deles ia morrer!

Foi permitido que os filhos, um por vez, a vissem. Saiam mudos, pranto sacudindo o corpo. Saíram do hospital e se concentraram sob uma árvore, próxima ao estacionamento, aguardando...

Uma das netas havia subido para ver a avó e estava demorando demais!

– Por que minha filha tá demorando tanto? – perguntou-se.

Antes que alguém disse algo, chegou uma das noras de Teresa, dizendo que o estado se agravara! O que foi confirmado pela neta quando saiu. 

– Levaram a vó para a tomografia pra ver se dá para operar. 

– Operar? – perguntou Leandro.

– É. Por causa do inchaço no cérebro.

Ficaram do lado de fora, aguardando...

O neurologista, que a atendera, viu os familiares e foi falar com eles.

– Não existe possibilidade de cirurgia. O lado direito do cérebro está destruído. Não adianta eu dizer para vocês que ela vai se recuperar. Não há mais nada a fazer. Agora, é só aguardar e tentar mantê-la viva nas próximas setenta e duas horas. Eu sinto muito.

Às 21h, tivera um sangramento importante na femoral. Esperanças? Minaram todas! Só por milagre!

Extenuados, cada qual foi para sua casa. O que podiam fazer, além de se recolherem em oração?

– Nossa mãe é forte vai sair dessa! – disse José.

A noite se foi e o dia clareou. A mãe sobrevivera àquela. Já começavam a nutrir esperança.

Vinte quatro horas, quarenta e oito, sessenta e duas... Setenta e duas!

– Nenhum outro procedimento será realizado. Somente depois de terminar o risco iminente de morte. Agora a prioridade é mantê-la viva! As duas próximas semanas serão decisivas. Há o perigo de infecções graves.

Duas semanas? O pesadelo parecia não ter fim! Aquele homem de branco, nunca trazia coisas boas. Êta, urubu! Ave de mau agouro!

– O período de internação é de aproximadamente trinta a quarenta e cinco dias – dizia a assistente social à filha mais velha. Vocês estão preparados para o que está por vir? 

O que, na verdade, a mulher queria saber era se a família estava preparada, se a casa oferecia as condições necessárias para recebê-la do jeito que ficaria. 

– Estamos sim! A casa tem o que ela precisará, é bem espaçosa.

Todos os dias foram de alegria e agonia. Percebiam uma melhora e, no decorrer de cada noite, um fato novo, complicava tudo e punha todos para baixo.

– Não vamos nos abater! A mãe não é de se entregar. Ela vai sair dessa! Disseram que ela não ia passar daquela noite, depois, que tinha setenta e duas horas, depois duas semanas e ela passou por tudo. É um passo de cada vez – diziam uns aos outros, renovando as esperanças.

Dona Teresa tivera dois AVCs no dia dezoito de novembro. O lado esquerdo de seu corpo estava “morto” – palavra do neurologista –, a fala estava comprometida, mas se ela lutava, os filhos lutariam com ela! Não importavam todas as sequelas, a mãe queria viver! E eles estavam felizes com isso! A dura jornada, que viria, pouco importava. A mãe, corajosa como sempre fora, escolhera viver. 

Dia três de dezembro, exatos quinze dias, após dona Teresa ter sofrido dois AVCs:

– Mana, adivinha! O médico disse que se o exame de amanhã confirmar que o procedimento de ontem deu certo, a mãe vai ter alta! – dizia Leonardo mais do que eufórico.

Parece que Amélia tinha razão, aquele seria um Natal inesquecível! O mais feliz de suas vidas.

– Agora é não esquecer os propósitos que cada um fez para que nossa mãe, viva o tempo que for, sempre sinta que nós a amamos acima de tudo! E que Deus seja louvado por ouvir nossas preces e por nos dar a chance de mostrar a ela o quanto a queremos perto de nós.

Aquele seria um Natal verdadeiramente feliz, em que o presente mais valioso não vinha de nenhuma loja. E o ano novo seria repleto de desafios, que haveriam de ser vencidos um a um. Perseverar seria a palavra de ordem em 2015.

Odenilde Nogueira Martins

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