PESCARIA- José Fernandes / conto

Traias prontas, partimos sem consultar os astros: a lua que controla o caruncho da madeira, a germinação das sementes, o crescimento das plantas, as marés. Seria uma pescaria de arrobas. Uma semana contemplando a natureza por dentro, revivendo mares de xaraés. 
Horas e horas rio abaixo, rio adentro, rio afora. Rio de mim. Rio de minha felicidade. Olhos cheios de árvores, de flores,frutos,pássaros. O sol mergulhava nos corixos, quando chegamos à beira de uma praia, em curvas indecisas de remansos pantanis. Muita areia e água transparente bebendo cores e cheiros de mato. Se ficássemos em jejum de peixe, poderíamos refrescar corpo e alma no vermelho das tardes-manhãs, ou nos raios escaldantes do meio-dia. Na verdade, não era muito afeito a alimento de mosquitos, mutucas e pernilongos em beiras de rio. Queria mesmo era descansar de amigos do dia a dia. Se. 
Mal chegamos, fui providenciar lenha para o churrasco, o meu forte. Nunca estivera em pantanal. Meus colegas, sim. Viviam pantaneando. Sequer imaginava os perigos que corria, embrenhando em matas-florestas. De onças, sabia o trivial; mas não as desejava por perto. Pelo menos, até entrar em capões interrompidos por corixos-rios-corixos, àquela hora já escuros. Trazia um revólver no corrião, segundo costumes do lugar. Mas, o que é um revólver para uma onça? Pode?! 
Ruídos de animais me amoleciam a coragem. Miados de corujas me pareciam onças farejando a presa. Guinchos desconhecidos de macacos eram roncos de caititus rodeando-me. Nunca fui hábil em trepar em árvores. Qualquer coisa, até me acudirem, estaria estraçalhado pelas feras. E se uma sucuri resolvesse me abraçar? 
Tive sorte. Antes de as pernas me desobedecerem, encontrei uma árvore caída logo à beira do descampado, construído pela última enchente. Apenas metros da tenda-cozinha. Arrastei-a até a praia e improvisei uma churrasqueira. Enquanto isso, os pescadores armavam os anzóis de galho, iscados consoante com os apetites piscinianos da época: muçum e jejum. Todos acompanhados de uma sineta, a fim de se saber peixe fisgado. Mal terminaram o ofício, um dos primeiros caniços-árvore anunciava peixe faminto. Acorreram a ele. Puxavam. Gemiam. Inchavam-se veias. Estremunhavam. Viam somente a enorme cabeça de um jaú. 
– Acho que só o Gusmão consegue puxar este peixe prá dentro do barco!
– Que pescadores são esses que, na hora do pega prá capá, não aguentam o canivete? 
Na verdade, o jaú não era tão grande. Uns quarenta e cinco quilos. Se fosse um dourado duns quinze, aí, sim, teríamos de espernear; mas dourado gosta de aventura. Não aprecia anzol de galho, sem emoção. A corda é que era fina e cortava as mãos dos pescadores de finais de semana. Volta e meia, um sino repicava. 
No outro dia, pela manhã, dois anzóis repicaram peixe simultaneamente. Quando foram atender ao segundo, encontraram apenas uma cabeça maior que a do jaú. As piranhas haviam-lhe devorado todo o corpo. À tarde do segundo dia terminou com uma ventania. Dia seguinte, segunda-feira, nenhum peixe no anzol. Nem piranha beliscava isca, a mesma usada nos dias anteriores. A lua mudara face e fase. 
À tarde, como não houvesse a alegria dos pacus, dos pintados, das pirararas, das piraputangas, Chupão enxugava todas as garrafas que encontrava na chalana e nas barracas: cerveja e branquinha, branquinha e cerveja; conhaque e cerveja, cerveja e conhaque. A garrafa de azeite das frituras só não foi sugada, porque fora enterrada na areia para escapar à sanha das formigas. A prática do auterocopismo o exaurira. Tombara junto à tenda-cozinha. 
Mal o sol se pusera, uma nuvem de pernilongos desceu da floresta, antecipando a noite. Eram tantos que não respeitavam repelex algum. Entravam pelos olhos, nariz, ouvidos. Quem abrisse a boca, engolia dúzias. Todos correram para a chalana. As telas ficaram pretas de asas e sinfonias. Aqueles que desejavam descanso, desceram ao convés, à procura de sombra e água fresca; outros montaram mesas, abriram garrafas-latas e entabularam um ruidoso truco. 
Lá pelas tantas, alguém levantou a lebre que não havia naquela ilha pantanil: Cadê Chupão?! Mesmo sendo inimigo contumaz dos pernilongos, Nhonhô atendeu aos apelos de Parnakós e lhe fez companhia. Foram verificar seu paradeiro. Chupão não se encontrava nem perto da fogueira, já apagada àquelas alturas, nem sob a tenda de alimentos. Focaram, com a lanterna, o alto das árvores e viram-no coberto de pernilongos que o levavam em cortejo, com banda de música e tudo.

Conto publicado em meu livro Assombramentos. Kelps, 1999.

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