Há sempre um barco - Donald Malschitzky - crônica

Poderia ser apenas mais uma quinta-feira como todas quando Florianópolis é o destino de trabalho, e espio a paisagem naquela curva à esquerda, em São Miguel onde sempre há uma bateira ancorada e ao longe se vê parte da ilha e seus contornos que sobem ao céu. Só que é outono, só que o mar, liso e acariciante,está tão incrivelmente azul e tanto reflete que ficava impossível não concordar com Fernando Pessoa, e algo sussurra: “Mas foi nele que espelhou o céu”.

Há dias, e são a maioria, em que o vento levanta aquelas ondas curtas de altura e de distância entre elas na água que separa ou une continente e ilha eo fundo lodoso se mistura à superfície e aparece uma outra beleza de contraste e nostalgia. Não que seja triste – cinza não é triste, é apenas cinza -, mas há em nós a necessidade da segurança trazida pelo que é claro, decifrável aos olhos e sentimentos, talvez para compensar os labirintos mais tenebrosos de nossas mentes. 

Em dias assim, as cores da bateira ancorada, embora destoem do entorno, pouco aparecem. Falta-lhes o brilho do reflexo. 

Na quinta-feira, no entanto,há um vermelho-pescador e um amarelo-navegar- é-preciso flutuando sobre o anil. Visto de cima, da estrada, daria bela aquarela, uma foto tocante da Lair Bernardoni (onde anda você?),um anúncio de viagem inesquecível. Mirando da margem, no nível do mar, é nave errante buscando contornos no horizonte.

Velho CD de Renato Teixeira embala o caminho e adia a escolha de sempre: “Pela Via Expressa ou pelo Estreito”. Pura coincidência:“O velho barco, toda vez que vê o mar, fica confuso, com vontade de zarpar”. O trânsito no Estreito, de tão tranquilo, parece desenhado para não estragar a paisagem nem as lembranças. De cima da ponte com pouco movimento, extensões de azul, de novo, convidam o pensamento ao voo. 

Há um velho barco dentro de nós, um barco de sentimentos confusos, de medos e desejos, que precisa navegar, mas não sabe se prefere fixar-se à âncora ou enfrentar as ondas, se espera pelo vento ou vai com ele, mas,enfim, navega, “mesmo que o casco seja corroído”, como continua a canção, porque há o chamado do horizonte, e segue até transmutar-se em ponto, em azul. Libertar-se.

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