Conto:SONHO NEGRO - Salustiano Luiz de Souza

Salustiano Luiz de Souza






SONHO NEGRO

Olhou para cima, fitando a marquise e achou-a alta, mas não tinha o que fazer sob o vento gélido, pois sabia que não conseguiria caminhar mais sob tamanho frio. Resolveu ficar. Estendeu sobre a calçada o papelão que antes fora uma caixa e sobre esse estendeu a toalha carcomida pelo tempo. Deitou-se sobre o improvisado colchão, se é que poderia chamar assim, rolando sobre a toalha entremeada de buracos, envolvendo-se primeiro nela e depois no papelão. Formava um enorme invólucro, mais parecendo um grande pastel, o qual combinava, por ironia, com o aroma que emanava da pastelaria próxima.

Quedou-se acomodado, o estômago já apreendera a suportar a mingua de alimento e a dor que lhe sobrevinha era mitigada pela esperança no dia seguinte. Tinha ouvido na porta da igreja que o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã e, mais do que ninguém sabia disso, porque sempre lhe era penoso deitar-se, era quando entrava em contato consigo, era quando ouvia o corpo contar ao espírito as coisas doloridas da vida, porque durante o dia entretinha-se com peripécias mil, mas a noite era solitária e penosamente longa.

Nos seus quinze anos de vida aprendera a driblar percalços, ainda mais que a vida não lhe sorria, aliás, não conhecia o sorriso da vida, apenas lembrava vagamente dos abraços da mãe, na tenra idade, e agora uma das formas de driblar a dor era entregar-se ao doce encantamento dos pensamentos e tentar sentir aquele afago que distante lhe acenava, e lutava para não deixar a sensação dissipar-se de vez, porque cada vez mais lhe parecia distante, como se fosse aos poucos imiscuindo-se nas brumas da vida, aquela vida sofrida que dolorosamente conhecia.

Uma lufada de vento o fez enregelar-se, e o calafrio percorreu cada centímetro de seu corpomiúdo, fazendo-o estremecer e mesmo tentando controlar não conseguia fazer os dentes pararem de tremer e sentiu a dor naquele dente no fundo da boca, tentou voltar aos pensamentos, aos braços quentes da mãe e ao seu sorriso de dentes alvos destacando-se na pele negra, mas sentiu os bofetões e pontapés do padrasto. Fez novo esforço, mas a viu inerte no caixão sem flores e tentava fugir desses pensamentos, mas era inútil, como inútil fora a fuga que fizera, pois a vida convertera-se em eterna fuga.

Virou-se para o outro lado, pois as costelas lhe doíam e foi um pesadelo porque todo o seu corpo sentiu o frio que entrava por dentro da roupa, parecendo apalpar cada centímetro de seu corpo e suas orelhas estavam doendo demais, hoje o frio parecia muito mais doído, tentou atenuar, permanecendo imóvel, não sabia por que, mas não conseguia dormir e os doces braços da mãe se misturavam com as cenas da rua, quando o chamavam de vagabundo e negro vadio e o mandavam trabalhar, mas trabalhar no que se nunca aprendera nada, até fora na porta da escola, mas a diretora disse que não queria bandido por lá, embora ele não fosse bandido, mas logo ia ser, porque os grandes lhe vinham pedir favores e diziam que para ele não pegava nada.

Descerrou lentamente os olhos e fitou a rua vazia onde o frio parecia solidificar-se, engraçado nunca imaginara que o frio pudesse ter forma, mas agora tinha a impressão que o via pairando sobre a rua, perambulando como um moleque igual ele e viu o carro chique que passou com crianças sorrindo e lembrou-se que Deus ama as crianças, mas decerto esquecera-se dele, também, Deus deve ter um monte de crianças para cuidar e às vezes é normal esquecer algumas, principalmente as negras, mas se Deus esquece o diabo adota e é provável que o diabo deva ter adotado bastante, porque tinha bastante criança que andava pelas ruas sem família.

Novamente concentrou-se nos afagos da mãe e dessa vez sentiu seus braços o envolvendo bem perto e um leve torpor o convidou a dormir, como era gostoso sentir aqueles braços quentes o envolvendo e como era gostoso poder ver novamente aquele sorriso que parecia iluminar o negrume do rosto e como era gostoso sentir o gostoso calor que emanava de seu corpo e como era gostoso ser embalado pela doce cantilena que brotava daquela boca de doce cantar.

Os raios do sol da fria manhã o alcançaram silenciosamente, confrontando-se com o barulho infernal dos carros voltando à rotina da cidade grande. Mas hoje ele não acordou. Agora tornara-se apenas mais um nas estatísticas oficiais.

Salustiano Souza

Junho/2015


0 comentários:

Postar um comentário