David Gonçalves: conversa com José Fernandes

1.O que te motiva a escrever?

Creio que escrevo por um impulso. Impulso de transformar a realidade, aquilo que nos rodeia, em arte. Há, também, em determinadas criações, um gosto de vingança do mundo e das pessoas que o transformam no inferno. Isso ocorre em determinados contos e crônicas, mas, com frequência maior, nos poemas. Quando trabalhava em uma universidade particular, por exemplo, o ato de vingar-me através dos poemas me permitia suportar atividades absurdas a que tinha de me submeter para manter o emprego. Escrever, portanto, é uma forma de conviver bem comigo mesmo, de sentir-me realizado ao sentir que produzi um bom conto ou um bom poema, embora o meu forte seja a crítica literária. Quando faço crítica, analiso textos de outros escritores, mormente poemas, em profundidade, já que o poético instiga o leitor a várias interpretações, uma vez que as imagens vergastam as palavras e fazem-nas dizer o indizível. 

2. Como se dá o processo criativo na tua vida cotidiana?

A inspiração ocorre de forma inesperada. No caso do poema, o contentamento ou o descontentamento com alguma coisa, pode inspirar o primeiro verso. A partir daí, vem o ato de transformar o real em imagens poéticas, que variam muito, de acordo com o assunto. Além disso, a leitura de outros poemas costuma levar à criação do meu poema, mediante intertextualização que, às vezes, lembra o texto lido, e, às vezes, distancia-se tanto dele, que se torna impossível estabelecer qualquer relação entre o meu texto e o poema lido. A ficção, além do sonho que pode funcionar como ponto de partida, pode advir de um fato real, como no conto "Florindo, a beata", ou o próprio "Navegante", em que o real, a morte criminosa do boi, enseja a imaginação e o imaginário, que levam a personagem à loucura. Além disso, perpassa o discurso uma espécie de vingança, uma vez que convivi com a junta de bois e com o Jodisão. O "insite" foi uma estátua de boi, à beira da rua. Ela me trouxe ao presente o acontecimento de infância que foi alimentado pela imaginação e pelo imaginário.

3. Quais são os contistas mundiais e nacionais de sua preferência?

Gosto muito dos grandes contistas da literatura universal: Gorki, Maupassant, Poe... Nacionais, gosto de Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Dalton Trevisan, Anibal Machado, Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis, Murilo Rubião, Elias José e, de modo especial, Machado de Assis e José J. Veiga. Os chamados "cronistas do absurdo", mesmo não sendo todos contistas, como Beckett, Ionesco, Fassbinder e Kafka, me fascinam.

4. Você é conhecido como ensaísta, poeta e cronista. "Navegante" é o seu primeiro livro de contos?

Não. Meu primeiro livro de contos se chama "Assombramentos", do qual fazem parte alguns contos de "Navegante", que também faz parte de sua segunda edição. Minha veia contística é meio entupida, que faz com que os contos me ocorrem raramente. É difícil ocorrer-me um fato real que suscite um conto, ou um sonho, como me ocorreu com os contos "A estrada", "O convite" e "Os mortos também se alimentam". 

5. Quais as dificuldades que o escritor enfrenta para escrever o conto? Enfim, por que existem mais cronistas do que contistas?

A estrutura do conto compreende a existência de uma trama, de um suspense e de um desfecho, de preferência, inesperado. Além disso, como o fez Machado de Assis, ele tem de ser recheado de símbolos que contribuirão para o enriquecimento da trama e, sobretudo, pela instalação do estético. Deve ser isso que dificulta escrever-se um bom conto. A crônica, a despeito de apresentar-se em inúmeras faces, como filosofia, ciência, sociologia, se realmente quiser fugir ao efêmero, não necessita desses detalhes típicos do conto. É apenas um discurso desenvolvido em torno de um tema, como o absurdo de se querer cassar um livro, como "A caçada de Pedrinho", acusado indevidamente de racismo. Exige, é verdade, bons argumentos; mas, não, a presença de personagens, de suspense, sustentados por uma trama bem arquitetada. Deve ser por isso que há mais cronistas que contistas. É o que eu digo, se for...

6. Em que situação está, hoje, o ensino de literatura nas escolas? Como ela pode ser melhorada?

O ensino da literatura nas escolas segue o mesmo descalabro por que anda o ensino em geral. Essa história de generalizar tudo com o maldito ENEM acaba com as peculiaridades culturais de cada estado e de cada região do país. Esse mesmo descalabro se observa com relação à literatura produzida em determinados estados em que não se observa aquele bairrismo necessário ao incentivo e à conservação dos valores locais. O professor de literatura tem de estar imbuído desse espírito, além de saber que a literatura é a fonte de todo conhecimento, à medida que, nela, é que se aprende a verdadeira dimensão do universo. Para superar esse obstáculo e atingir o nível de conhecimento necessário, o professor tem de ler muito para incentivar a leitura. São poucos os colégios em que se encontram professores realmente conscientizados da importância da literatura, sobretudo depois que transformaram o curso de letras em cursinho de três anos, em que não se estuda mais a literatura, como se deve, em nível universitário. 

7. Os contos de NAVEGANTE revelam uma espécie de rotinização do fantástico, a transfiguração da realidade, o sentido oculto do mundo. A literatura do absurdo não se distancia da realidade?

O absurdo está tão presente na realidade que se torna difícil, às vezes, verificar onde termina o real e começa o surreal. Assim, contos realmente fantásticos de "Navegante" seriam "Florinda, a beata" e "Navegante", em que se observa a presença do sobrenatural. A maioria deles é absurda, naquele sentido propalado por Albert Camus, em "O mito de Sísifo", e criado pelos cronistas do absurdo, como Kafka, Beckett, Ionesco. Fassbinder, José J. Veiga. Há contos, como "O convite", em que absurdo e fantástico convivem no mesmo discurso, como faz José J. Veiga, em "A ilha dos gatos pingados", por exemplo. Se o leitor verificar o que se passa em cada um dos contos, constatará que a realidade e o absurdo estão muito próximos, como se vê, por exemplo, no conto "Trabuzana", em que a corda arrebenta do lado mais fraco. 

8. No momento, você está preparando outro livro? De contos, poesias, crônicas?

No momento, tenho vários livros, mais ou menos na dimensão desse, preparados. A maioria é ensaio: um sobre literatura e filosofia, outra sobre José J. Veiga e outro, sobre Bernardo Élis. Há um, porém, um de poemas, prontinho. Só falta grana para publicá-los, quer por parte do autor, ou de alguma editora que os queira assumir. 

9. Por que o brasileiro lê tão pouco? Como isso poderia ser melhorado?

A leitura é um hábito inteiramente dependente do grau de cultura. Como a maioria dos brasileiros é analfabeta funcional, o hábito da leitura se torna quase impossível, mesmo diante da facilidade de se ter o texto em forma de livro ou de postagem na internet. Se você observar, ao postar um texto no Facebook, por exemplo, constatará que, mesmo entre seus amigos, poucos irão lê-lo. Há uma indisposição cultural para a leitura. Isso é realmente lamentável. 

10. A Internet pode mudar a forma de escrever? De que forma ela pode ajudar a divulgar a literatura?

Creio que a internet pode influenciar não na forma de escrever, de manusear a língua; mas na extensão do texto, à medida que tudo tende a tornar-se mais rápido. Como forma de divulgação, ela ajuda muito, desde que o internauta já disponha de disposição cultural para a leitura. Se não, ele não se mostrará interessado em ler, mesmo vendo a propaganda, ou simples divulgação de um livro ou mesmo postagem de um texto. 








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