Um escritor de Jandaia - Juarez Poletto

Gostaria de usar este espaço para apresentar um escritor: David Gonçalves.

Meu primeiro contato com a obra de David ocorreu em 1986 quando, em um ponto de ônibus em Curitiba, encontrei Vicente Ataíde, conhecido meu do tempo da PUC onde ele era professor. Tinha uma bolsa cheia de livros. Sem mais lá nem cá, perguntou-me de chofre se eu não queria escrever um livro para a editora dele, pois havia lido minha recente publicação. Então me mostrou GERAÇÃO VIVA, do David e me deu seu telefone. Quando nos despedimos na Praça Tiradentes, eu estava convencido a escrever e curioso para ler o livro que recebera.

O início bíblico do primeiro texto me ganhou: “Joãpó gerou Reboão, Reboão gerou André, André gerou Santônio e seus irmãos, Santônio gerou – de Rosário a Pedro Simão – um parindo outro:” E o texto continuava nesse ritmo aparentemente repetitivo, mas envolvente. Eu queria saber onde aquela corrente me levaria e fiz, em duas páginas, uma viagem pelo sertão e pela cidade encontrando os desvãos da vida com suas mazelas e odores. Não parei mais de ler o autor. Hoje somos amigos.

De recente, li SANGUE VERDE e antes de ontem terminei o mais recente: PÉS-VERMELHOS. Ambas as obras não me permitiram parar a leitura e quando parava, por força das circunstâncias, remexia na memória as vivências das personagens e minhas expectativas sobre a condução da narrativa. SANGUE VERDE é um belíssimo painel sobre a colonização e destruição da Amazônia. Muito veraz, fruto de cinco anos de pesquisa do autor. Obra atualíssima. PÉS-VERMELHOS é outro romance-painel sobre a colonização do Norte do Paraná desde a Segunda Guerra até tempos mais recentes.

O trabalho é um dos focos temáticos de suas obras desde o princípio, o trabalho suado que constrói a duras penas algum equilíbrio econômico e que é solapado ou pelas intempéries ou por mãos de ganância. Dentro deste viés, está a tecnologia usada pelos trabalhadores. No início com machados e enxadas, depois com motosserras, caminhões e tratores. No início, sem dinheiro; depois com dívidas. David não é contra o progresso, apenas relata a ação de homens e mulheres nesse contexto de assentamento e de mudanças.

Não se trata de autor preocupado com uma linguagem sofisticada nem inovadora, não atende à expectativa bastante comum das academias, porém seu texto está integrado ao mundo que elabora em linguagem. Ali estão os ditados populares, as frases de para-choque, as sabedorias do povo, as personagens reais da vida em sua linguagem verdadeira. Não faz salamaleques com as palavras e por isso são tão convincentes.

Em PÉS-VERMELHOS há personagens como o padre Silvino, ativo e polêmico, não por suas ideias, mas pelas ações; o matador Galo Cego, frio e objetivo a serviço dos mais poderosos e inescrupulosos; o Chiquinho Preto, objeto de chacota e maldades nas ruas por onde mendigava; o político Rodoão, típico defensor de costumes e aparências, é fraudulento, egoísta, mesquinho e vulgar; Santônio, o agricultor à moda antiga, trabalhador e honesto, acostumado com pouco e persistente; a Maria Alegre, dona do prostíbulo; o Damaso, farmacêutico sem formação, que vendia fiado e acompanha a transformação da cidade; o menino Gabriel e sua trajetória de filho de agricultor a escritor; o pastor que vem da cidade grande para convencer o povo simples através de milagres preparados; o Fritz, alemão construtor da estrada de ferro, sempre com calor e bebendo cervejas; e tantos outros mais ou menos presentes nesse conjunto em ebulição, na efervescência das mudanças de um tempo de conquistas e derrocadas da economia do café e depois da soja. 

O mundo não é dividido em bons e maus, brutos e sofisticados, estudados e ignorantes. Os simples têm sua sabedoria, os brutos suas fraquezas, os bons suas idiossincrasias, os maus sua bondade. É um mundo misto ou um misto de pessoas que constituem um verdadeiro mundo com suas nuances e variedades, singularidades e discrepâncias que fazem a verossimilhança da ficção.

Isso é apenas uma pitada do tempero eficiente que é a literatura de David Gonçalves.

Juarez Poletto: Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2007)e Professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná; Escritor com experiência na área de Letras e, ênfase em Poesia e Ficção, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia e crônica.

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Quando a saudade apertar... - conto - Odenilde Nogueira Martins

Havia dois anos e oito meses que sumira. Dia desses, quando os pais chegaram a casa no final do dia, eletro eletrônicos da sala haviam sumido. A policia foi chamada. O apartamento térreo, em que moravam, fora furtado. Sinais de arrombamento não havia. 

– O furto foi cometido por alguém com acesso à casa – dissera o policial. – Quem mais tem a chave daqui?

– Ninguém, além de nós e de Joacir – respondera o proprietário.

– Quem é Joacir?

– Nosso filho.

– E onde ele está?

– Na escola, onde mais haveria de estar? O senhor não está pensando que...

– Por enquanto, penso em tudo, minha senhora!

– Isso não tem o menor cabimento! Joacir é um rapaz tranquilo que nunca nos causou preocupação – dizia.

– Nunca tivemos nem incomodo na escola. É um aluno aplicado. Nunca reprovou! Passou no primeiro vestibular que fez pra medicina. E numa universidade federal – exaltava o pai cheio de orgulho.

– Quando seu filho chegar, quero conversar com ele. Saber dos amigos que vinham aqui.

– Nosso filho é muito reservado. Não trazia amigos.

– Nem os colegas de faculdade?

– Nem os colegas de turma. Minha esposa até insistia para que trouxesse, mas ele não gosta de dar trabalho. Diz que não lhe agrada ver a mãe tendo que arrumar a bagunça dos amigos. Mas ele tem muitas amizades, passa os finais de semana em companhia deles na praia ou acampando. A namorada parece ser uma boa moça. É bem moderninha. Usa umas roupas meio rasgadas e o cabelo despenteado e mal cortado, como esses jovens gostam de usar. Veio aqui procurar por Joacir.

– Ela disse o que queria?

– Sim. Convidamos pra entrar e ela pediu para ir ao quarto do nosso filho pegar um livro. Ia precisar pra estudar. Nem deu tempo de perguntar se estudava medicina também. Disse que estava atrasada. Haveria de voltar outro dia com tempo.

– Ela levou o livro? Vocês viram que livro era?

– Não vimos porque ela pôs na mochila. Mas disse que tinha encontrado.

– Qual o nome dessa moça?

– É um nome estranho. – Mulher, como é o nome da namorada do nosso filho?

– Tamires.

– Tamires, e o sobrenome?

– Ela não disse. 

– Aqui está o meu cartão. Quando seu filho chegar, quero conversar com ele – disse o policial, estendendo a mão e se retirando.

– Aí tem coisa. Na semana que vem vamos investigar – comentou com o colega, já dentro do elevador.

2

– Gostaria de falar com o delegado Gilmar. – Eu sou Raul. O pai do Joacir. O delegado esteve em meu apartamento na sexta-feira, por causa de um furto.

– O senhor aguarde, vou avisar – disse o atendente da décima regional.

– Então, seu Raul, o que o traz aqui? Seu filho apareceu?

– O meu filho não apareceu em casa, desde sexta-feira. Ele nunca fez isso. Alguma coisa séria aconteceu com ele. 

– Vai ver resolveu prolongar o final de semana. Esses jovens gostam de fazer isso!O senhor já falou com alguém, vizinhos, pessoas da faculdade?

– Sim. Os vizinhos não viram nada.

– Silveira!

– Pois não, delegado.

– Registre o desaparecimento do filho do seu Raul e se encarregue da investigação. Acompanhe o Silveira. Ele vai lhe fazer algumas perguntas. Depois, volte aqui, Silveira.

– Sim, senhor. Venha comigo, seu Raul.

– O que achou? – perguntava o delegado ao investigador.

– O pai não sabe muita coisa da vida do filho. O que acontece fora de casa, não sabe. O filho não dá preocupação. É um bom rapaz. Será sequestro?

– Sei não. Gente certinha, de bem, boa família, as cadeias têm bastante. De um simples furto, temos agora um desaparecimento. Mantenha-me informado sobre a investigação.

Durante o tempo em durou as investigações, todo tipo de informação foi recebida: Joacir tornara-se um traficante perigoso, perdera-se nas drogas e estava vivendo nas ruas – vez por outra – alguém ligava dizendo que fora visto em diferentes pontos da cidade, sempre em lugares suspeitos, até que estava em outro estado, fora visto com uma mochila nas costas, pedindo carona na estrada que dava acesso à cidade. Mas, o que de verdade sabiam? Somente que o rapaz frequentara o primeiro semestre de medicina, com excelente desempenho. 

– Uma pena que tenha desistido. Tinha um futuro promissor! – dissera um dos professores.

Os colegas de turma não ajudaram nas investigações.

– Ele não gostava de muita conversa. Eu tentei fazer amizade com ele, mas era muito arredio. Não permitia aproximação. Sempre muito sério. É um gato! Fiquei atraída por ele. Até convidei pra sair com a turma, mas disse que não gostava de conversa fiada. Depois desse fora, desisti – contava uma garota da turma de Joacir.

3

– Vocês não estranhavam o fato do filho de vocês não trazer amigos, não apresentar a namorada, não falar da faculdade?

– Cada um tem um jeito de ser. Nosso filho sempre foi quieto, desde pequeno. Até nas festas de aniversário, não brincava com as outras crianças. A última festa, fizemos quando tinha nove anos. Ele disse que não gostava, preferia que déssemos dinheiro pra ele se divertir do jeito que queria.

– E como ele se divertia? – perguntava o investigador, tentando traçar o perfil do rapaz.

– Ele guardava o dinheiro que a gente dava. Uma vez, de tanto que eu insisti, aceitou ir ao cinema comigo. Depois, consegui que fosse a uma loja e escolhesse um presente. Escolheu um jogo de vídeo game e um kit de desenho, a contragosto. Disse que o dinheiro podia ser melhor utilizado. Preferia guardá-lo. Eu disse que um prazer vale mais que tostão guardado. Não disse nada, mas só porque não gostava de discussão.

O mistério aumentava, alguns dos objetos furtados foram recuperados na casa de um elemento que fizera alguns consertos no apartamento do casal e, que preso, confessara ter feito uma cópia da chave. Computador, aparelho de som, uma guitarra, que havia no quarto do filho, descobriram que foram vendidas pelo próprio Joacir. O dinheiro economizado pelo rapaz fora sacado por ele. As câmaras de segurança do banco mostraram.

– Nas companhias aéreas não há registro de compra de passagens. Na rodoviária também não. A senhora tem ideia de como ele gastaria o dinheiro que economizou nesses anos todos? É uma quantia bem razoável. E ele encerrou a conta. 

Não imaginavam como gastaria o dinheiro: não era vaidoso, muito pelo contrário, não fosse os cuidados da mãe, teria uma muda de roupa e um par de tênis , dizia não precisar mais do que isso.

4

Depois de dois anos e oito meses de registrada a queixa de desaparecimento, ali estavam os pais, diante da sepultura onde o filho nem enterrado estava. Só uma lápide para dizer da saudade que sentiam, com a epígrafe:

“Quando a saudade apertar, busquem-me no vento, no ar, na água e na terra. Ali me encontrarão.”

O telefone tocara no meio da noite, prenúncio de notícia ruim. O casal entreolhou-se em uma pergunta muda: quem vai atender? Não se moveram e o som parou. Continuaram sentados na cama, silenciosos. Mas coisa ruim é insistente. Raul tomou coragem, foi seguido pela esposa cuja expressão de pavor não era diferente da do marido.

– Atende, Raul! E se for notícia de nosso filho? Quem sabe o delegado descobriu onde ele está? 

– Esse é meu medo. Quem liga de madrugada pra dizer coisa boa? Alô!

– Seu Raul?

– Sim. Quem está falando?

– É a Tamires. Eu estive em sua casa há mais de dois anos. Sou amiga de Joacir – a voz era tranquila.

– Por favor, você sabe do nosso filho?

– Sim. Vou passar o endereço. O senhor pode anotar?

– Eu não entendo. Como nosso filho foi parar nesse lugar?

– Só vamos saber quando chegarmos lá. Arrume as malas, mulher. Vou tratar de comprar as passagens pro primeiro voo que tiver. A moça disse que devemos estar lá o mais rápido possível.

– O que será que aconteceu com nosso filho, Raul? 

5

Contemplavam a fogueira crepitante cujas labaredas pareciam lamber a noite, uma língua alaranjada, tremulante, que subia e descia. Um cheiro nauseabundo invadia as narinas. Ouvia-se um frigir estranho misturado aos estalos da madeira. Figuras esquisitas proferiam preces e entoavam cânticos, ora lamurientos, que mal se ouviam, ora celebrativos, vibrantes. Andavam de mãos dadas em torno da fogueira. Giravam, giravam, giravam... E quando a roda parava, todos retiravam de um saquinho, que traziam pendurado junto ao corpo, um maço de folhas e jogavam no fogo. Tudo parecia irreal. Tamires participava do ritual, rosto sereno, vez por outra, sorria. O rosto de Raul e da esposa ardia por causa do calor do fogo, entretanto não conseguiam se afastar, pareciam pássaros presos no olhar hipnotizador de uma serpente. Tudo parecia irreal. Quando só restavam cinzas, todos se retiraram. 

– Venham. Vou mostrar-lhes onde passarão a noite. Amanhã, assim que o Sol surgir, a cerimônia continuará – dizia Tamires, despertando-os do torpor que os acometera.

Seguiram a moça silenciosamente. Ainda não haviam entendido tudo o que acontecera desde que ali chegaram.

6

– Onde está o meu filho? Diga! Por que ele não veio nos esperar? O que aconteceu? 

Eram muitas as perguntas e Tamires não as respondia, aumentando o desespero dos pais que cada vez mais tinha a certeza de que o filho partira.

Quando chegaram ao lugar onde Joacir morava, o casal deparou-se com um lugar que só haviam visto em cenas de filmes. As construções de palha rodeavam uma espécie de arena a céu aberto. Que lugar era aquele?

– Eu e Joacir escolhemos viver aqui. Encontramos o que precisamos, paz. Não há violência. Somos todos irmãos. Dividimos tudo o que produzimos e o que sobra, é distribuído a outras comunidades. Joacir foi acometido de uma febre que o levou.

– Vamos. A cerimônia já vai começar. Este era o desejo dele. 

Epílogo

Assim que o Sol surgiu, as cinzas foram recolhidas em uma gamela de madeira. Uma procissão encaminhou-se para o ponto mais altos da aldeia e o que restou do rapaz, foi espalhado ao vento. Fez-se a vontade dele.

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Odenilde Nogueira Martins








Cavalo disparado - Causos da roça - Odenilde Nogueira Martins

– É a mais pura verdade! Ninguém me contou. Eu vi! Não só eu. O Júnior também viu. Ele estava em nossa casa. Tinha vindo passar o fim de semana. 

– Conta logo, papai! Conta! 

– Não sei não! Periga ter gente aqui que não vai conseguir dormir. 

– Conta! A gente não tem medo de nada! 

– Está bem! Depois não quero ninguém na porta do meu quarto. Combinado? 

– Combinado! Ninguém vai! 

– Está certo! Era uma noite de lua cheia. Lá fora estava quase tão claro como está aqui. Depois de um dia inteiro de brincadeira, eu e Junior fomos dormir cedo. O dia seguinte ia ser de mais diversão. A gente estava tão cansado que adormeceu sem escovar os dentes. Lá pelo meio da noite, eu acordei com os latidos da cachorrada. Parecia que estavam avançando em alguém. Pensei que pudesse ser um gato ou um gambá. Virei pro lado, disposto a ignorar. Mas, daí, ouvi os cavalos relincharem na cocheira, e os cachorros avançarem com mais brabeza. Se fosse gato ou gambá, os cavalos não iam se agitar daquele jeito. Então, pensei que podiam estar sendo atacados por alguma serpente. Tinha muita cobra por causa do celeiro. Cobra adora lugar que tem milho. Levantei da cama e saí pra varanda espiar. Não acendi as luzes que era para os avós de vocês não acordarem. Do lado de fora da cocheira, estava o Malhado, corcoveando como se estivesse sendo esporeado, parecia que alguém estava montado nele em pelo e o segurava pela crina. O bicho estava doido, tentando se livrar do que estava grudado em seu lombo. Ah! Meus filhos, fiquei apavorado! Nisso chegou o Junior, muito assustado, agachou ao meu lado e ficamos assistindo à peleja do Malhado. De repente, ele se acalmou e só bufava. Os cachorros continuavam avançando em alguma coisa que não conseguíamos ver. Achei que devia acordar o pai pra ver o que estava acontecendo. Quando fiz menção de me levantar, o pobre animal soltou um relinchado agoniado e desabalou pelo pasto. A cachorrada toda atrás. Nem precisei chamar o pai, deu tempo de ele ver a corrida do Malhado. Até hoje não sei o que aconteceu. Na época, acreditava que era o Saci-Pererê fazendo estripulia. 

– Pai, você não acha que era bom vender os cavalos? – perguntou um dos filhos de Daniel.

Cavalo disparado - Causos da roça - Odenilde Nogueira Martins

A luzinha - Causos da roça - Odenilde Nogueira Martins

– Conta, moço, conta! – pediam as crianças, que ouvindo a palavra assombração, abandonaram a ciranda.

– Se vocês insistem... Depois, nada de ficar com medo! Então, parece que estou escutando o Raul contar:

“– Vocês podem perguntá pra qualquer morador das fazendas por aí. Eles vão dizer que viram também. Eu tinha ido pra cidade e me demorei. Era umas dez da noite, quando peguei a estrada, que tem aquele capão, antes da fazenda Santa Luzia. Tava uma escuridão que só. O céu tava encoberto, ameaçando chuva. Pisei no acelerador pra chegar antes que descesse água. Dali a pouco, vi uma luz batendo no espelho retrovisor. Soltei um palavrão. Quem será que era o barbeiro que vinha atrás com luz alta? Diminuí a velocidade e dei lugar pro sujeito passar. Ele continuou atrás. Luz alta me cegando. Dali a pouco, percebi que me alcançava, rápido demais! Vai bater em mim! – pensei, segurando com força o volante, me preparando pra batida. Rapaz do céu! Vi a luz se erguer, passar por cima do carro e seguir adiante, na minha frente! Só vi a luz, carro que é bom, nada. Eu juro, por esta luz que tá me alumiando, que é a mais pura verdade!

– O senhor, pelo menos, tava de carro, compadre. Quando isso me aconteceu, eu tava a pé, voltando de um baile. Aconteceu a mesma coisa! Olhei pra trás e vi a luzinha. Ela foi chegando cada vez mais perto de mim. E eu cismado porque não ouvia o ronco do motor. Olhei pra trás, tinha sumido, quando virei pra frente, lá ia, na minha frente. Eu não sou medroso não, mas nunca mais peguei aquela estrada de noite, sozinho – reforçava o causo outro trabalhador.”

Verdade é que a tal luzinha continua perseguindo aqueles que se aventuram à noite por aquelas bandas.

A luzinha - Causos da roça - Odenilde Nogueira Martins
                       


Poemas / Onévio Antonio Zabot

ADEUS ÀS BREVES GOTEIRAS

Ao ver a velha escola tombada pelo tempo
Senti uma dor infinita no coração.
Ali parada acenava para o mundo...

Socorro...! 

Desolada - pedia socorro à pequena escola.
Todos os alunos que por ali cruzaram subitamente
Reencontraram-se... Silêncio profundo.

Cumprimentam-se um a um como se estivessem
Assistindo a primeira aula... Manhãs de outrora. 
Estendem as mãos, rezam uma prece, doce glamour! 
Cena inesquecível, pássaros retornam aos ninhos.
Saudade danada que não acaba.

Quanta saudade, ó Deus!
Daqueles momentos fagueiros...
Quanta saudade...!
Rever companheiros, recreio de sempre,
Embora ali nunca tivesse estudado.

Não sei por que aquela
Era também minha escola.
O mesmo professor,
As mesmas carteiras d´outrora .

...Ali estive como extensionista,
Bem mais tarde que as andorinhas.
Que o diga Carlos Iarochinski
E seus atrevidos bem te vis.
O mundo é assim, nada podemos fazer...
Despistar o próprio destino.

Ao ver a escolinha abandonada...
Portas e janelas puídas - telhas tombadas no chão.
Beijo a velha porta carcomida.
Por onde tantos sonhos adentraram.

E lá estava o quadro negro:
Letras graúdas traçadas a giz:
Adeus às breves goteiras.

(Onévio Antonio Zabot)
Homenagem a Escola Isolada da Estrada Santa Catarina onde fiz minha primeira reunião como extensionista rural em Joinville (1979), hoje abandonada (2015), fruto da nucleação do ensino.


INDÓCEIS CARAVANAS

Sigam-me,
Disse o profeta. 

E todos o seguiram.

Primeiro as aves,
Depois as montanhas.

Os leões 
E suas mansas patas.

O vento,
E as brancas baleias semoventes.

Caminhar.
Luzes de caminhar.

Bois 
Mugiram.

Mansos bois:
Áspera memória.

Gramados ergueram-se:
Folhas novas.

Algas.
Incontáveis algas.

Raízes,
E o vento de sempre.

E todos seguiram:
Indóceis caravanas.

Seguiram de seguir,
Como cabras seguem.

Como bodes seguem:

Faca amolada
Afiando lua.

(Onévio, 2012)


AMIGO DAS NOITES VAGAS 

Pobre cão, tiveste a prisão como destino. 
Jamais sentiste o gosto da liberdade, 
Nem o cheiro das campinas em flor. 
E morreste, abandonado, numa noite de calor. 

Quantas noites intrigado olhaste a lua,
Quantas noites namoraste as estrelas.
E de tanto vê-las sonhaste com elas.
Mas agora estas com elas, e pode tê-las.

Aonde vagas, pelos campos do Senhor,
Amigos te recebem de abraços abertos.
E ladras feliz, velho cão companheiro!
Um grito de liberdade ecoa decerto.

Namorador de estrelas, a benção, enfim:
A boa brisa dos campos verdejantes...
E corres, corres pelas estradas do céu...
Nada lhe é estranho, tudo é fascinante.

Curta, curta o céu Nico velho de guerra!
Mas não esqueça aqui debaixo, da gente.
Quando puder, dê uma escapada, apareça.
Ficaremos felizes, em vê-lo novamente.

Traga notícias de lá... Mandaremos de cá.
Se foste amigo, mais ainda agora serás.
Erguer pontes no céu - que bela missão!
Unindo gente daqui com a gente de lá.

Um abraço aos amigos. Sentimos tua falta,
Mas vamos em frente, cheios de boa fé.
E um consolo que nos conforta somente:
Um dia estaremos juntos - se Deus quiser.
(Onévio )

Homenagem a Nico, bravo Nico (2010)


ÁRVORES AMIGAS

Onde dormem meus passarinhos
Que com que alegria fizeram seus ninhos, 
Mas que a esta hora não mais estão por aqui. 

Se foram acaso às calendas,
Assim que a noite cobriu o mundo
E sopram os ventos do frio inverno.

A esta hora, Santo Deus, que frio!
É o inverno com seu manto encarnado
A cobrir os campos gelados.

Mas esta hora onde repousam meus passarinhos,
Ressabiados passarinhos que tanto quero bem!
Quem por eles... Alguém acaso os salvará!

Há árvores aqui por perto
E há árvores ao longe.
Há árvores por todo o lado, árvores amigas.

É lá que dormem os passarinhos,
Domem meus passarinhos por lá...
Nas copadas verdes embalados a sonhar.

Respondam-me, ó fadas da mãe-natureza, 
Por favor, respondam-me,
Ó filhas prediletas do anoitecer.

Onde, onde...
Onde dormem meus passarinhos
Nestas frágeis horas.. Onde?!

Enquanto houver árvores amigas,
Responderam as fadas a soluçar...
Pássaros, pássaros amigos sempre haverá.

(Onévio)
Joinville, 17 de Julho, 2017


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Onévio Antonio Zabot

TEIMAS DE ANÉSIO - Onévio, causos dos fundões / Onévio Antonio Zabot

Apequenado de tamanho - pouco mais de metro e meio -, nunca de teima. Só podia ser Anésio: tiguerado feito joá amarguento, espinhoso e reticente. Sobressaia-lhe a feição soturna: um par de olhos miúdos e enfiados na testa, e as pernas arqueadas de domar burro bravo. Rude e indomável, toda sua formação vinha da escola do mundo, do mato, já que pouco freqüentará a cidade. Pedra podia ser pedra, desde que estivesse de acordo. Do contrário, podia ser pau, o diabo. Mudar de idéia!... Nunca. Não era doido, nem vassoura varrida.
Prá azedar o homem chegando à lua (1969, julho, dia 20, coisa de 23:56:31). Anésio empombou-se, desandando de vez. Naquela tarde, como de costume oitavado no balcão do boteco interiorano, indignado e incrédulo, confabulava:
– Pousam em algum cafezal geado, e dizem... 
– É a lua. 
– Diabo! É o fim... 
– Rafaelão, ao lado - cabisbaixo - repuxando a aba do chapéu, assente: 
- É!... Em quem confiar? Mexer com Deus é o que querem.
Afrontá-lo, afirmar o contrário, quem ousaria? Matias Vilaverde, o mais valente, mesmo com três culhões , escafedeu-se.
Anésio – figura intrépida – de birra invocava por qualquer coisa. De índole imprevisível, voltava-e-meia, depois de alguma cachaça, metia-se em encrenca. Qualidade única, se era: resolvia as diferenças no braço. Nada de arma branca, de bala. 
Implacável, meias-botas de couro crú, barreadas e ressequidas, adentrava diariamente à vendinha do interior. Coisa de final de tarde, 17h00 horas. 
- Uma cachaça, seu Luiz!... Copo à mão, depois de oferecer aos presentes, cortesia de boteco, de uma talagada, entornava. De bate-pronto, disparava uma cuspida a capricho na alquebrada parede. O torpedo descia escorregando entre sacos da farinha de mandioca, adernando-se na velha prancharia de peroba. 
Contrariado, naquela tarde, mastigava freios. Eis que surge Américo, sujeito franzino, uma besta humana. Fofocas mal resolvida atravessaram o caminho. E ambos deram-se à forra.
No gramado, do lado de fora da vendinha, o pau cantou. Socos, pontapés, rasteiras. Tudo a rodo. O velho granjeara fama de ser bom de rasteira, de roda-botas. E não deu outra, a surra foi das boas. De parte a aparte, ameaças de morte e promessas de tiros. Calaram-se, todos se calaram na velha vendinha interiorana. Ainda bem. Ninguém viu, muito menos ouviu nada. Roupas esfarrapas, chamuscadas de grama, esverdeadas. E só. 
Todos sabendo de tudo. Vazou. Anésio, pai de família, andava de caso com uma cunhada. O comentário partiu de Dona Maria, a parteira. Dona Ana, irmãs de Delcides, mulher de Anésio, acabará de dar a luz a dois gêmeos. Veio abaixo o mundo, ficou pequeno o lugarejo. Cochicho espichado, longo, de azucrinar. Reboliço adoidado. Rezadeiras, resignadas, benziam-se. O capeta anda solto, comentavam.
E pra completar... Mais confusão no povoado (caralho que o parta!): Dilma, mulher de Zé Baiano deu em flertar com Zé Pernambuco, seu melhor amigo de pescarias. Pegos em flagrante, o lugarejo ficou pequeno para tanta zoeira. Nada demais, se tudo não estourasse na venda de seu Luiz, domingo à tarde. 
Baiano que jogava bocha, diante da chegada de Pernambuco, não titubeou, ergueu a camisa, alçou a velha a garrucha e tascou fogo. Coisa de dois tiros: um de cada cano. Um corre-corre dos diabos. Felizmente, entre mortes e feridos todos se salvaram. Baiano, andava mal de pontaria.
Anésio, encurralado por Delcides, a infeliz esposa, passou a dormir na tuia de café, encima de uma velha lona, arreiada de fazer dó. 
E dias desses, meteu susto na vizinhança. Coisa de meia noite, todos ouviram estampidos, disparos de arma de fogo vindo do rancho ao lado. O barulho ecoou surdo pelos carreadores, captado por meio-mundo. 
- Deve estar morto, esse filho duma puta, cismou Delcides.
Todos correram ao mesmo tempo. No escuro, o cheiro de pólvora era insuportável. Pelo jeito detonara os dois canos de uma única vez. Seria contra o peito, contra a cabeça. Onde estariam os miolos? Certamente dependurados no teto. Que nada!
Veio a baixo o mundo: 
- Avante, sosseguem, esbravejou furioso o vivente, afundado no rancho! 
- Levem o rato com vocês!... E lançou o estranho imbróglio sobre Neusa, a filha 
mais velha. 
Assim era Anésio: imprevisível. Dera cabo de um rato a tirambaços, tirambaços de-acaba-mundo, abrindo o teto do velho rancho. 
Entreolharam-se, todos se entreolharam boquiabertos, enorme furo no teto; taboinhas voaram. Concertá-las à noite... pouco provável. Chovia. E a chuva tudo molhava. 
E Anésio deu de recarregar a chumbeira de cano duplo. Socava a vareta cano adentro e socava: pólvora-e-bucha, chumbo-e-bucha, às camadas. Em seguida - batendo na concha da mão -, ajustou a espoleta. Incontinenti e negaceando, armou o gatilho. Olhos esbugalhados de caçador de nuvens. Apavorados, todos deram o fora. 
Naquela noite os disparos, intermitentes, cadenciavam-se de quando em quando, rebombando pingos de chuva. 
Anésio era Anésio: desnorteado atirava à toa.

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Onévio, causos dos fundões.

No Tempo da Bolacha Maria - crônica / Urda Alice Klueger

Eu cresci no tempo antigo, antes da televisão, da geladeira, dos supermercados e das guloseimas sofisticadas de hoje. Na minha infância, comia-se bem, mas a variedade era pouca. Uma mesa de café farta era uma mesa que tinha pão (de casa ou de padeiro – pão de padeiro não era comprado na padaria: o padeiro o entregava nas casas, de manhã cedo, com uma carrocinha puxada a cavalo), queijo branco e queijo amarelo, linguiça, manteiga (ainda não existia a margarina por aqui), nata fresca, mel de abelha e os muitos mussis que as mães da gente faziam com as frutas do pomar. A gente variava deste jeito: hoje comia pão com mel e nata; amanhã, pão com manteiga e mussi de banana. Em dias especiais, comprava-se um pouco de salame, considerado iguaria, comido com parcimônia devido ao preço. Se a mãe da gente fosse prendada, que era o caso da minha, fazia uma porção de docinhos de polvilho no forno à lenha, e gostosos bolos nos dias em que fazia pão.

Para comprar na venda (para os jovens: venda é o antepassado de supermercado), havia balas azedinhas e balas de coco-queimado, mata-fomes (uma bolacha grosseira,feita por padeiro), e a bolacha Maria. Não pensem, porém, que se chegava na venda e se comprava um ou dois pacotes de bolacha Maria, como se faz hoje – não, a gente pedia 200 gramas de bolacha Maria, e o dono da venda abria uma lata enorme cheia de bolachas, e pesava os 200 gramas num saquinho de papel pardo, que a gente levava para casa com muito orgulho, quiçá se exibindo para as outras crianças que não tinham comprado bolacha Maria. Vale lembrar que a bolacha Maria daquela época era igualzinha à que existe hoje.

As balas e a bolacha Maria eram o máximo de guloseima que existia na minha infância, nos dias normais. Em dias especiais, que eram o Natal e a Páscoa, ganhava-se chocolates. Chocolate era uma coisa que só era vista nessas duas ocasiões do ano. Minha tia Frieda, quando vinha do Rio de Janeiro, uma vez por ano, trazia umas balas de coco diferentes, que eram a nossa alegria.

Na época em que entrei na escola, lá por 1960, começaram a existir outras guloseimas: o sorvete-seco, a maria-mole, o puxa-puxa. Minhas professoras, todas freiras oriundas de Minas Gerais, um dia fizeram e venderam no colégio legítimo doce-de-leite mineiro. Que sabor maravilhoso que aquilo tinha! Por anos, talvez, sonhei em comer aquilo de novo – ainda tenho aquele gosto de doce-de-leite na boca!

Havia em Blumenau, também, as confeitarias: Socher, Tönjes, lugares sofisticados onde às vezes o meu pai me levava para comer um doce diferente. E havia as cocadas e os sonhos que se compravam quando se viajava de trem, mas tudo isso eram exceções: o dia-a-dia só nos apresentava as pobres balas das vendas, e a bolacha Maria. Balas mais sofisticadas só apareceram na minha adolescência (Chuva-de-ouro, Chuva-de-prata, bala de cevada), e eu estava bem grandinha quando surgiu o chiclete bola Ping-Pong, sabor hortelã. 

De repente, lá por volta de 1970, houve um boom nas guloseimas. Em primeiro lugar, apareceram os supermercados com variedades incríveis de bolachas recheadas, iogurtes, coisas divinamente saborosas, que não conhecíamos. Os frios se multiplicaram, e lembro da primeira vez que comi presunto cozido – que coisa deliciosa! Era toda uma nova gama de sabores que vinha encantar a gente, e foi também ali por volta de 1970 que surgiu em Blumenau uma novidade fantástica: os carrinhos de cheese-salada! Com certeza, nas últimas décadas da história da cidade, não havia acontecido nada parecido com aquele estrangeirismo que vinha, de repente, modificar profundamente os nossos gostos alimentares. Com os cheese-salada veio a descoberta da mostarda amarela, do catchup, da maionese sem ser com batatas, a valorização do milho verde e da ervilha, a descoberta do gosto picante do molho de vinagrete. A mistura de todos aqueles sabores novos num só sanduíche era uma coisa paradisíaca, e um programa importante da minha juventude era ir comer cheese-salada, não importava se fosse cinco horas da ‘madruga’ – não se podia sair de uma festa e ir dormir sem um abençoado cheese-salada!

O tempo passou, e todos os novos sabores que surgiram faz quase três décadas se incorporaram normalmente ao nosso dia a dia, e creio que já não saberíamos viver sem eles. Mas, às vezes, me bate uma saudadezinha da minha infância, da simplicidade das guloseimas de então, e daí passo no supermercado e compro... um pacote de bolacha Maria. Continua sendo muito gostoso.

Blumenau, 11 de agosto de 1996.

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Foto de Marlete Cardoso
Urda Alice Klueger - Escritora, historiadora e doutora em Geografia

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