A terra roxa é barro e marca como sangue... - Afonso de Sousa Cavalcanti - sobre o romance "Pés-vermelhos" de David Gonçalves

 Ao se tornar leitor e observador da obra literária Pés-Vermelhos, do consagrado escritor David Gonçalves, o sujeito mergulha no tempo e percebe que a pretensa Saga ou Romance vai muito além da ficção, tornando-se um calhamaço de contos e de narrativas, com conceitos e definições muito bem construídos. O autor se torna responsável para levar o leitor nos cenários da dita Quadrínculo e ali, dos primórdios dos anos de 1940 até o final do século XX, ele conceitua e define personagens, lugares, ideologias e abraça sem medo a História do Norte do Paraná (o dito Nortão). 

Santônio e Isabel são dois esteios que representam famílias de migrantes e imigrantes, colonizadores, formadores de lavouras cafeeiras, sofredores dos destroços da Segunda Guerra Mundial. Tal família dá aos filhos exemplos de honestidade, de perseverança, de amor ao trabalho e, sobretudo, deixa aos filhos uma herança amorosa e econômica. Tem seu nome registrado na história, pois seu herdeiro, o Gabriel, dialoga com os enfrentamentos vitais e se torna escritor de renome da literatura brasileira. 

Os vários personagens, o padre, é ao mesmo tempo um servo de Deus, mas é homem de carne e osso, tem sentimentos e por isso fracassa, mas sabe voltar aos serviços do Sagrado. O farmacêutico ultrapassa as bases de ser puramente comerciante, vendedor de medicamentos e se põe na arte de curar. As vítimas sociais (as mulheres exploradas se tornaram prostitutas porque existiam homens que as buscavam como objetos de prazeres) também são filhas de Deus, embora eram vistas como destruidoras de casamento e até mesmo ladras do dinheiro (sujo) de seus amantes ou homens de prazeres passageiros. Os trabalhadores, de um modo geral, os ocupados nas lavouras cafeeiras, nos serviços de construção de ferrovias e rodovias, comerciantes e prestadores de serviços, ... são elementos necessários ao progresso de Quadrínculo. Os políticos são vistos com desconfiança por aqueles sujeitos pensantes, como era o caso do padre Salvino, do farmacêutico Damaso e principalmente por alguns professores do Gabriel e do próprio Gabriel. Infelizmente a grande massa não sabia nada, não desconfiava de nada. Merece destaque a defesa dos pobres, dos oprimidos, dos portadores de necessidades especiais. Não se pode furtar do exercício da trama da Saga ou do Romance, a inteligente busca de analisar as ações fraudulentas dos personagens históricos que se adonaram de terras, de direitos políticos e principalmente da malvadez de perseguir, discriminar, processar, matar, vilipendiar o próximo. Cabe a reflexão, a meditação precisa sobre as torturas históricas de certos patrões que exploraram seus parceiros na colonização; daqueles, que, na ação violenta da vida de jagunços, insultaram e mataram vítimas desprovidas de resistências. A descrição da intervenção militar, no ano de 1964-1985, é sem dúvida uma dádiva à história, por intermédio da literatura. O escritor viveu todas as fases crônicas do regime militar e com sagacidade se encheu de experiência e por isso é autoridade para criticar. 

Não se pode ser ousado em resumir o escrito belo de Pés Vermelhos, mas o leitor e escritor da crônica não pode furtar ao andar dos anos do calendário descrito e por isso diz:

Santônio e Isabel, após pisarem o solo roxo do Sertão Jandaia, ambos viram seus pés e mãos sujos pela lama e poeira da terra vermelha. Unidos carregaram os filhos no colo e os puseram a andar, pensar, criar, trabalhar e progredir. Cada um procurou seu caminho, seguindo os exemplos paternos de que a sujeira da terra vermelha indicava prosperidade, amor à colonização, unidade familiar e prosperidade para uma nação. O gérmen da colonização e da cafeicultura foi herdado por Gabriel. Enquanto seus pais, irmãos e todos os construtores do Norte do Paraná, brandiram ferramentas, plantaram e colheram recursos diversos, transformando a floresta tropical em lavouras produtivas, em cidades agradáveis para se morar, em rodovias, ferrovias, aeroportos e outros meios de locomoção, comunicação e de transformação, o menino Gabriel cresceu em graça, cuidados, sensibilidade e inteligência e conseguiu fazer uma leitura fantástica. Gabriel é o restinho da família, tornou-se agraciado por Deus para pensar, registrar fatos e deixar memórias, porque ... desde pequeno aprendeu a sujar seus pés e suas mãos com a lama e a poeira da terra roxa. Fez todos os experimentos que um filho de um agricultor poderia fazer: rolou no barro, cavou a terra, plantou, colheu e principalmente conseguiu escutar as sementes nascendo e com os próprios olhos espiou os vegetais, os animais e todas as energias cósmicas que sustentavam a pequena Quadrínculo. O sol nasce para todos, mas nem todos conseguem aproveitar as energias que o grande astro nos proporciona. 

Mandaguari, 29 de agosto de 2017.

AFONSO CAVALCANTI, Doutor em Educação, Administração e Comunicação; Mestrado em Filosofia. Professor emérito da FAFIMAN, UNIPAR, FACCAR e do Estado do Paraná.


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